domingo, 3 de outubro de 2010

LARVA


IZA CALBO


Sinto-te como quem sente flores pisadas no chão
Borboletas abortadas no casulo
Ou versos que não se estabelecem no papel
Sinto-te torpe
Num desespero que tropeça na loucura
E amassa papéis velhos socados nas gavetas.
Nem sei se o momento é de encontro
Ou se o sorriso é de verdade
Cambaleio em meio a mentiras
E mudo todas as minhas senhas
Para que nem eu mesma me ache
Estou à mercê do seu beijo matinal
Das suas carícias adornadas pelo desejo
E desta sua insistência em reafirmar o amor que,
Se existe, não o considero diretamente a mim.
Cansa-me a imperícia dos homens
O linguajar chulo das amantes contrariadas
O vaivém de bobagens que escuto e finjo não entender
Não quero nada
Absolutamente nada
Porque o nada é uma imensa estrada
Na qual construímos nossos sonhos
E, cedo ou tarde, todos eles se despedaçam
Como as flores pisadas no chão por onde passas
Ou as larvas que nunca experimentarão
A beleza infinita das borboletas.

Imagem: WEB

segunda-feira, 30 de agosto de 2010

BILHETINHO



O fato de não estarmos mais juntos,
não impede que o amor permaneça.
Deixemos tudo como está.
Eu sou uma pessoa independente e,
ainda que me sinta só às vezes,
sei que sua companhia estará sempre comigo.
Somos uma prece.
Somos os mesmos de quatro anos passados.
O sentimento ainda pulsa e isso é o que importa.
Não esquenta a cabeça.
Não se divida.
Eu me cuido.
Eu me amo.
E, por me amar,
te amo sem cobrar absolutamente nada.
Fica o tempo que for preciso.
Volta se quiser.
Faz cada coisa a seu jeito.
Como dizem os sábios:
o que é do homem o bicho não come.
Ouvir tantas coisas lindas,
já valeu o dia,
a noite e até a ausência física.
Porque a presença que não se vê
é, não raro, maior e mais importante
do que aquela que devora o cotidiano
e vai matando o amor aos poucos.
Beijos, beijos e mais beijos.
Cuida de você.
E, se não tiver tempo,
deixa que eu cuido de nós dois.

Pelos dias 23 e 24-agosto-2010
Lembra sempre: É Isso Aí!

DEFINITIVO


IZA CALBO

Deixe-me só.
Não queira saber de mim.
Eu sequer existo.
Não pense que se aconteceu algo, isso representou realidade.
Sente a areia movediça acima dos teus pés,
enquanto o sol de agora me esquenta a nuca.
Beija a boca que estiver mais perto da tua,
porque meus beijos não estão à mercê de desejos escassos.
Cata o lixo espalhado pela casa e se suja na lama que te segue.
Eu não quero nada além que não seja belo, limpo e puro...
E, sinceramente, muito menos alguém que me encha o espaço com mentiras.
Reveja as datas.
Tuas contas estão todas erradas.
E não apareça para buscar os trapos velhos...
Minha porta mudou de lugar.

Imagem: WEB

quinta-feira, 26 de agosto de 2010

O DOM DO SILÊNCIO



IZA CALBO

Escuta o silêncio.
Há mil falas no que pensamos não ouvir.
Atenta...
Coloca teu sentido para apurar o não dito
O que calamos quando a vontade era a de explodir.
Ouve cada barulho que não nos é dirigido
Que é simplesmente lançado no espaço sem endereço e, muitas vezes,
por remetente desconhecido.
Tenta captar o som que não incomoda
E aquele que invade o cérebro como música que não se deseja ouvir.
Sente cada nota não tocada
Cada xingamento não dirigido
Cada fala entrecortada pelo vento
Por transeuntes desconhecidos nos passeios das ruas
Senta num dos bancos da igreja
E ouve a prece que não se diz, mas se faz
Ainda que em nada mais se creia
No dia em que aprendermos a viver em silêncio
Talvez aprendamos a escutar o que grita o nosso coração
Neste dia, apenas neste dia, seremos sábios
E quando nada mais houver para ouvir
E o coração, como nós, silenciar
É porque, neste instante, tropeçamos com a paz
Sem alarde, sem buscá-la,
Apenas porque aprendemos a ouvir o
Que somente ao coração é dado o dom de pronunciar
Sem buscar evocar belas palavras ou mentiras vãs.

26-ago-2010
IMAGEM: Web

terça-feira, 24 de agosto de 2010

NAS ASAS DO ANJO



IZA CALBO

Te rever, tocar
sentir que o tempo não existiu
Reimprimir os sentidos e os sentimentos
Ressentir só amor... sem mágoa
Retomar o tesão e tocar teus lábios
E quase morrer nos Teus/ Meus beijos
Te fazer cafuné e, até,
te tomar nos braços como sendo apenas Um
Como se nunca tivéssemos estado longe
Como se o AGORA fosse o SEMPRE... E É!

quarta-feira, 14 de julho de 2010

COMO NO CINEMA


IZA CALBO

Eu amo a minha doce serenidade de agora
A paciência que chega e não vai embora
Como se tudo fosse um filme
Roteirizado, dirigido e realizado por mim
Porque eu me enquadro na cena
E protagonizo o que há de vida
E que se duplica
Para que tudo seja editado
Com o glamour das estrelas
Que encarno
E que me faz seduzir o tempo em cada plano
Aproximando, revendo, refazendo a história
Com beijos que se vão
Beijos que se dão
Com a maestria da técnica que o amor não exige
Porque o que vale nesta tela de brinquedo
É estar atenta ao enredo
Escrito na hora
No assim e no agora
Em preto-e-branco
Em cor
Em close
Em detalhe que só a luz que ambienta
Pode e deve traduzir-me em risos!

14-07-2010
Foto: Arquivo pessoal

sábado, 10 de julho de 2010

A MORTE NO MORRO DE MARIA



IZA CALBO

Morando no Morro do Águia, há mais de 30 anos, Maria não tinha expectativas com relação ao futuro. Os filhos mais velhos viviam do tráfico de drogas, e os mais novos eram usuários e “aviões”. O marido, José, um pedreiro sem carteira assinada, fazia “bicos” para trazer pão para casa. Ela, para aumentar os parcos ganhos, costurava, limpava, passava e lavava para os outros. Embora tivesse 40 anos, tinha a feição marcada pelas rugas de uma preocupação incessante, e também por não sentir-se mais amada e muito menos mulher. Não raro, apanhava do marido, que, bêbado e trôpego, descarregava nela suas frustrações. Como se ela já não as tivesse de sobra.
Era comum viver marcada pelos murros e empurrões. Como era igualmente normal ser tomada à força e abrir as pernas sem vontade, para um sexo violento e sem nada que beirasse os seus desejos. Vizinhas mais antenadas com os direitos das mulheres citavam para ela a tal Lei Maria da Penha, aconselhando-a dar queixa daquele homem, ou mesmo dos filhos mais velhos, igualmente violentos e desrespeitosos. Maria, contudo, não ousava abrir a boca. Tinha medo de voltar, e sabia bem que não seria acolhida, a menos que as agressões a deixassem à beira da morte. Vivia, então, seus dias de medo. No final da tarde, fazia uma sopa rala e um café insosso, e esperava a chegada do pão para alimentar os quatro filhos caçulas. Eram dez ao todo. E apenas uma menina, Helena, a mais nova, de um ano e dois meses.
Maria não saía muito do barraco, nem era de ficar de prosa com a vizinhança. Confiava apenas em Cida, comadre de longas datas, a quem confidenciava as amarguras do dia-a-dia. Cida era prostituta, e José não gostava da amizade de Maria com ela. Por isso, só se viam quando tinham certeza da ausência de José, ao longo do dia. Afora isso, se entreolhavam, mas não trocavam palavra. Sabia, no entanto, da queda de José por Cida, e das vezes em que o dinheiro ganho nos “bicos” havia ido parar no sutiã da comadre, guardado entre os seios já flácidos daquela puta de todos os homens do morro. Não se incomodava com isso. Afinal, Cida não escondia, e José muito menos.
Num dia acizentado, escutando as notícias de um programa sensacionalista, em sua TV velha e cheia de rabiscos, Maria escutou acerca de uma execução e da morte de quatro jovens. Estava costurando e olhou para a imagem. De imediato, reconheceu a tatuagem de um dos filhos, e saiu feito louca para ver o corpo ainda à espera do Instituto Médico Legal (IML). Lá, encontrou não apenas George, como Vladson, Francisco e João, quatro das suas dez crias. Todos perfurados por balas numa cena dantesca. Não se aproximou demais. Apenas viu a morte anunciada, e uma lágrima marcou-lhe a face. Onde estariam Norberto e Ademário? Deu às costas, e voltou para o barraco. Sequer tinha uma vela para acender, e talvez, se a tivesse, não o fizesse. Os filhos eram brutos. A tratavam como a um trapo, entre empurrões e xingamentos.
Os três caçulas, Robson, Roberto e Radson chegaram chorando no barraco. Ela não fez nenhuma pergunta. Tinham 13, 14 e 15 anos. A pequena Helena era “raspa de tacho”, pois, desde o nascimento dela, Maria frequentava o posto de saúde, e, sem pedir permissão a José, usava pílulas anticoncepcionais. Não queria mais pôr filhos no mundo. Filhos que, pensava, logo se voltariam contra ela. Não demorou para José entrar afobado no barraco, falando da desgraça que se abatera na família. Como se ele pensasse assim! Maria sabia: por dentro, o marido estava dando graças a Deus, por se ver livre dos filhos traficantes, que, muitas vezes, o haviam agredido moral e fisicamente. Mas José chorou, e acabou aparecendo na TV falando da dor de um pai em perder seus filhos. Maria viu aquilo com ar de nojo. E, mais, José jurou se tratar de meninos bons, bem educados e livre do miserável mundo das drogas. Obviamente, a reportagem associou a execução ao tráfico, não dando também muita importância à morte de quatro supostos delinquentes.
Naquele dia, Maria observou o que restara: Noberto, Ademário, Robson, Roberto, Radson, Helena e José. No dia seguinte, enterrariam George, Vladson, Francisco e João, no cemitério da Quinta dos Lázaros, na ala reservada aos pobres. Os caixões foram doados pelo programa de TV, a pedido do pai, e a cova rasa os esperava no chão de barro do lugar cheirando a morte. O enterro também foi televisionado, e o repórter afirmava que a mãe estava em estado de choque. De onde ele tirara isso? Maria estava lá, por obrigação, e em estado de alívio. Voltaram num ônibus fretado pelo traficante e dono do morro. Não trocaram palavra. Maria apenas tirou o seio murcho e amamentou Helena.
Duas semanas depois, tudo parecia ter voltado ao normal. José agora bebia mais, porque, sem quatro filhos, o dinheiro dos “bicos” parecia sobrar, embora faltasse tudo em casa. Pagou para comer a comadre puta; deu uma surra em Maria, num sábado qualquer, sem motivo aparente, e, por pouco, não matou a pequena Helen,a derrubando-a do colo, numa tentativa de brincar de pai amoroso. Dos seis filhos ainda vivos, Maria parecia se preocupar apenas com Helena, e, pensando nisso, pediu a Cida que levasse a pequena para longe dali. Cida retrucou: - Como você vai explicar ao compadre, mulher? Ela disse apenas: Leve ela daqui. E assim foi feito.
Ao chegar em casa, José perguntou pela caçula, e Maria, aos prantos, avisou que a menina havia sumido. Mal terminou de falar, e já tomou o primeiro murro, perdendo mais um dente. Depois, ouviu todos os xingamentos, e viu José sair para reclamar no Posto Policial sobre o desaparecimento. E assim Helena entrou para a lista de crianças desaparecidas, sem ter uma foto sequer para servir de identificação. Com a boca ainda inchada, Maria saiu na manhã seguinte até a Feira de São Joaquim. Pediu chumbinho numa barraca, substância com venda proibida e usada para matar ratos. O chumbinho era vendido sem nenhuma fiscalização. Bastavam-lhe dois pacotes.
Á noite, com os dentes que restavam a lhe doer e a mama cheia de leite, colocou chumbinho na sopa rala, e esperou todos chegarem para servir, com a desculpa de que ainda não aprontara a comida. José chegou por último. Maria sabia que pelo menos outros três filhos deviam ao traficante, e, quase em súplica, naquela tarde, pediu ao homem uma solução. Ele, mesmo acostumado à violência, não entendeu o desespero daquela mulher de boca inchada. Mas ela explicou o que iria fazer. A ele bastava que ele mandasse seus “soldados” invadir o barraco, e, mesmo que todos já estivessem mortos pelo veneno de rato, fossem metralhados.
Ele achou que estava errado, mas também disse não estar muito incomodado. Quando todos estavam tomando a sopa, os homens entraram com seus fuzis. Alguns já estavam sentindo dores, mas os tiros certeiros em pontos vitais trouxeram o esperado descanso. Maria, a última a ser morta, olhou e guardou aquele sangue nos olhos semicerrados. No dia seguinte, a TV anunciou a chacina da família dos quatro jovens, que, no mesmo mês, haviam sido executados. Todos foram associados ao tráfico, e o inquérito dado por encerrado.
Ao saber do fato, Cida saiu em direção a uma casa que tinha num bairro pobre da cidade, e embalou Helena como se a uma filha. Deu a mamadeira da afilhada, e rezou uma Ave-Maria, pensando na aflição da comadre. Pelos outros, não teve sequer pena. Nem mesmo dos outros dois afilhados. Deitou-se ao lado de Helena, e dormiu sem pensar no enterrro, ao qual não compareceria na manhã seguinte.

Imagem - Internet

ASAS PARTIDAS



IZA CALBO

Desde a primeira troca de olhares, Carolina sabia que não iria parar. De súbito, um calor tomou seu corpo e um tremor a fez querer ter aquele homem junto a si. Fabro tinha olhos cor de água, uma boa musculatura, ombros largos, esguio... Tudo na medida exata. Isso fazia as palmas das mãos de Carolina se apressarem em carinhos no pássaro desenhado naquelas costas. Mas onde daria aquela história? Algumas casas os separavam, e, numa delas, havia mulher e filho a esperá-lo. Ficaria a amante resignada? Ou, depois de contatos mais íntimos, a saudade se tornaria fúria a cutucar-lhe a alma?
Não sabia. Queria pisar fundo no acelerador perigoso dos encontros furtivos. E não demorou muito para Fabro bater à sua porta. Carolina nem pensou. Abriu e o recebeu como se o conhecesse há muito. E, para espanto dela, a pequena poção de sexo foi extenuante. Os corações disparados, o suor de ambos confraternizados num abraço sem definições. Após três encontros, Carolina não teve mais notícias de Fabro. Olhava pela janela; esperava os passos; as batidas na porta... Nada!
Soube, então, que ele se mudara para outra cidade. Isso quatro dias após o terceiro encontro. O mais intenso. Por que Fabro não falou que partiria? Que morbidez esta a de deixá-la a esperar no sótão? Relembrou apenas uma frase dele, antes de escapar sorrateiro: - Vai demorar um tempo para nos vermos de novo! Entendeu esse tempo como algo entre 10 ou 15 dias.
Não hesitou em iniciar uma caçada por notícias mais concretas. Perguntou discretamente aos vizinhos sobre aquele homem com um pássaro colado nas costas. A saudade, transmutada em fúria, parecia ter se tornado uma presença indomável. Soube que estava numa cidadezinha do sul do País, não muito longe. Juntou as informações, como quem recorta palavras e escreve cartas de resgate. Já tinha o endereço. Era o bastante.
Passou a morar perto dele, olhando-o à distância. Não demorou a vê-lo bater em outras portas e fazer amor a toque de caixa. Ou bater em algumas portas, e só sair pela manhã, após uma noite inteira com outra. Isso a encheu de ira. Uma ira sem controle. Lá estava o homem com o pássaro nas costas. Lá estava o homem com olhos transparentes. O homem que ela desejava, mas que era um perdido em vielas sujas, becos, buscando prazeres nas drogas e nas mulheres da vida.
A partir daí, a vontade de cortar as asas do pássaro passou a ser uma obsessão. Carolina, sem desconfiar deste lado negro e vingativo, passava horas a assistir filmes de assassinato. Estava movida pela fúria do ciúme, provocada por uma saudade sufocante. Resolveu voltar a seu sótão, a fim de não levantar suspeitas. Passou a conversar com as pessoas pela internet, demonstrando estar bem, ainda que só. Mas, pelo menos durante uma semana, ela ia até onde Fabro estava, e se instalava numa pensão de quinta, para acompanhá-lo em suas aventuras.
Numa destas vezes, o viu abraçar uma mulher de cabelos curtos como os seus, e rodopiá-la na despedida. Como fazia antes de deixá-la sozinha à sua espera. O sangue subiu ao cérebro, e seu coração tornou-se uma pedra de gelo. Naquele instante, exatamente a partir daquela cena, nada a impediria de urdir um plano no qual ele e seu pássaro estúpido deixariam de ser livres para sempre.
Embora ainda lembrasse ternamente dos três encontros e do sexo cheio de vigor, feito com horas contadas, algo havia se modificado na meiga feição de Carolina. Tão logo pode, rumou a uma loja e comprou algumas perucas e óculos, para poder andar mais próxima dele, sem ser notada. Numa destas investidas, Fabro chegou perto demais, mas ela saiu, como se não notasse a mão quase pousada em seu ombro. Não podia se dar ao luxo de ser descoberta. Não queria seguir humilhada pelas andanças de Fabro, cujas mentiras incluíam a de um casamento no qual era marido fiel até vê-la pela primeira vez. Fidelidade que durava, pelas contas dele, mais de cinco anos e que só havia se quebrado ela troca de olhares dos dois.
Como iria atraí-lo? Pensou em várias maneiras. A mais fácil seria pagar uma das moças para seduzi-lo, e dopá-lo. E depois? Como levá-lo de um lugar a outro? Decidiu alugar um quarto e sala, num beco sujo, onde boa parte das moças que ele levava para a cama morava. Era um quarto sem quase nada. Uma cama de solteiro de madeira velha, um abajur, uma penteadeira antiga, uma cadeira, um banheiro com uma cortina lamacenta no box, uma geladeira caindo aos pedaços e um fogão igualmente velho. As roupas de cama vieram juntas e cheiravam a mofo. Não havia uma área grande para estendê-las. Contudo, tudo poderia ser improvisado.
Como fez falsificando os documentos e o novo nome: Cassandra. A mulher desdentada não exigiu muito para alugar-lhe o moquifo. Apenas o adiantamento de um mês, mas ela lhe dera o de quatro, avisando que era para um amigo de prenome Fabro. Não queria manter contato. Precisava esconder suas feições, sua fala; evitar contatos desnecessários. Fabro estava quase sempre por perto. Trabalhava durante o dia; falava ao celular com a esposa, umas três ou quatro vezes por semana, e, depois, no tempo livre, entregava-se às mulheres e às drogas.
Carolina, agora Cassandra, passou a ficar num dos pontos de venda. Não puxava conversa com os outros, mas fingia ser usuária. Conheceu uma mulher gorda, de belo rosto, chamada Adriana. E Adriana falava demais. O que era uma bênção. Cabia à Cassandra apenas escutá-la e esboçar acenos com a cabeça, ou murmurar poucas palavras. Adriana vinha de uma família rica, mas, viciada em crack, morava nas ruas. Para comprar a droga, fazia programas. O prazer que tinha quando usava era passageiro, e isso a forçava a aumentar o número de clientes para o seu sexo descuidado, sem uso de preservativo, e sem olhar a cara de quem a tomaria nos braços, em troca de R$ 15 ou R$ 20.
Adriana já havia estado com Fabro, não como prostituta, mas como parceira para dividir a efemeridade do chamado “beijo da morte”, ou crack. Não sabia bem qual o motivo, mas Fabro gostava de ficar ao lado dela. Talvez, por Adriana lembrar vagamente a mulher que deixara em casa. Esta comunhão poderia render o que Cassandra esperava. E não tardou a acontecer.
Numa noite meio chuvosa e fria, Cassandra ouvia as aventuras e desventuras de Adriana, quando Fabro se aproximou e ficou ao lado delas. O excesso de roupas, a peruca, a maquiagem e os óculos estranhos não permitiram a Fabro reconhecer Carolina. Além disso, havia o crack a embotar-lhe a mente. Neste dia, Carolina fumou um pouco daquela coisa maldita, enquanto Fabro perguntava-lhe sobre sua vida. Por sorte, Adriana se antecipava contando-lhe o que imaginava saber: - Esta é Cassandra, mas ela não se vende; até aluga um quarto. Perdeu um filho por causa das drogas, e veio parar aqui, na tentativa de esquecer.... Ela quase não se droga, não gosta da pedra.
Fabro perguntou se podia acompanhá-la até sua casa. Inicialmente, ela negou, mas saíram juntos, sem trocar palavras. No quarto, Fabro jogou-se na cama, e, apesar do frio, tirou a blusa. Deitou-se de costas e o pássaro parecia querer alçar vôo dali. Cassandra deixou apenas o abajur ligado, e entupiu a bebida de Fabro com sonífero. Ele sorveu rapidamente e disse: - Vem!
Cassandra ouviu a voz suave. Pensou desistir. Não podia. A fúria da saudade mesclada a tudo o que vira era maior. Despiu-se do disfarce e apareceu nua. Ele balbuciou: Eu a conheço... Mas Carolina/Cassandra ofereceu-lhe mais crack. Quanto mais ele fumava, mais queria. Os olhos cor de água começaram a revirar e a boca espumava. Ele se contorceu um tempo, e tombou de costas no chão. Mortos, Fabro, o pássaro e a pacata amante abandonada.
Cassandra saiu e, no dia seguinte, após quase quatro meses embalando o fim de Fabro nos braços, ao invés de usar a lan house, falou com os amigos do seu sótão, como a Carolina de sempre. Dois dias depois, soube da morte do vizinho por overdose, conclusão dos peritos, ao ouvir a dona do quartinho e os drogados das redondezas. Foi reconhecido pela esposa, por conta da tatuagem: Pássaro morto e sem asas!

Imagem - Intenet

SEDUÇÃO E VENENO



IZA CALBO

Tudo parecia nulo na manhã de segunda-feira. O Outono a rondar os passos de Suzana e o coração aos saltos ensejando estar ao lado de Iago. Ela não sabia ao certo como explicar à Luiza, sua amante há mais de cinco anos, o repentino interesse por aquele rapaz de cabelos encaracolados e olhos beirando a mel. Os três se conheceram numa danceteria, e passaram a sair juntos. Suzana mantinha distância de Luiza, sob o pretexto de preservar a união e escapar ao preconceito. Luiza não se importava. Iago era tímido, mas ficava sempre com um olhar inquieto para ambas. Passar algumas horas com Suzana, algumas vezes por semana, e manter isso em segredo, era o pacto feito entre eles. Logo, Luiza não saberia de nada, e tudo se harmonizava.
Luiza e Iago costumavam conversar. Mesmo quando Suzana se afastava. Havia entre eles uma luz perceptível a olho nu. Fácil de ser percebida de longe. Quando Iago estava trabalhando, Luiza e Suzana aproveitavam para tocar e trocar carinhos libidinosos. Moravam na mesma casa, e tinham um comportamento insuspeito. Para os vizinhos, eram boas amigas. A presença de Iago despertou a curiosidade. Qual delas era a namorada do belo jovem? Ninguém sabia. Em casa, eles jogavam, assistiam a filmes, e, após certo horário, Iago se despedia, deixando as duas mulheres com suas vidas de sempre.
Mas Suzana não ficava completamente à vontade. Luiza parecia apática. Uma não perguntava nada à outra, e muito menos comentavam sobre Iago. Suzana era jornalista, e Luiza antropóloga. Iago trabalhava como web design, numa grande empresa, e todos eram financeiramente independentes. Isso permitia que cada um vivesse a seu modo, e nenhuma interferência iria (supostamente) abalar o cotidiano.
Num sábado qualquer, Luiza e Suzana saíram para dar uma volta pelo bairro boêmio do Rio Vermelho, um dos locais mais movimentados dos dias e noites baianos. Suzana disse a Luiza que não havia conseguido falar com Iago, omitindo apenas a tarde passada com ele num motel, naquele mesmo dia. Luiza confessou haver tentado convidá-lo, mas também não disse por que chegara em casa após o horário de costume. Por volta da meia noite, no badalado Acarajé de Cira, Iago apareceu acompanhado de uma mulher, e as duas amantes não conseguiram disfarçar o constrangimento. Apresentou-a como uma colega de trabalho chamada Leila.
Com algumas doses a mais, Iago e Leila passaram a demonstrar algo além da amizade, na troca de olhares e afagos. Reticentes, Luiza e Suzana metralharam a moça de perguntas, num quase interrogatório. Leila, sempre na defensiva, fingia não estar compreendendo tamanho interesse, e perguntou se as duas eram namoradas. O semblante de Suzana ficou bem mais pesado que uma manhã de Inverno. Luiza fingiu espanto e ofensa. E Iago, conciliador, negou qualquer tipo de relação que não uma amizade de muitos anos. Mas Leila insistiu e perguntou se elas tinham algum namorado. Afinal, eram jovens e bonitas. Ambas disseram que tiveram relações terminadas recentemente, e estavam aproveitando a vida.
Iago e Leila deixaram o lugar, e as duas ficaram em completo silêncio, sem trocar palavra. Depois de meia hora, decidiram pedir a conta e seguiram para casa. Suzana deitou no sofá da sala e Luiza foi para o quarto. Amanheceram assim. No final do dia, receberam a visita de Iago e agiram friamente, como se houvessem combinado tal reação. Iago perguntou se havia algo de errado. Para ele, como elas eram namoradas, nada o impedia de acrescentar uma quarta pessoa a este conjunto. Contudo, elas não pareceram satisfeitas diante daquela mulher jovem, morena, sorridente e irônica. Calaram-se.
No dia seguinte, Suzana marcou com Iago. No motel, despejou toda a raiva sentida no sábado ao vê-lo com outra mulher. Ele falou não compreender tal ataque de ciúme, se ela tinha uma vida ao lado de Luiza e ele não se importava. Discutiram um bom tempo, mas acabaram fazendo amor. Suzana, desta vez, não sentiu o mesmo prazer de antes, e perguntou se “transar” com Leila era bom. Iago respondeu que sim. Suzana bateu a porta e pegou o seu carro quase esbarrando numa grade de proteção.
Ao chegar em casa, não encontrou Luiza, mais uma vez atrasada. Onde estaria? Começou a se perguntar. Duas horas depois, Luiza apareceu e foi direto para o banho, mas Suzana a seguiu e quis uma explicação. Luiza disse que não a estava reconhecendo. Afinal, nunca exigiram nada uma da outra. Haviam prometido serem leais e fiéis. Suzana disse que não estava pensando nisso, mas Luiza disse que ela deveria.
Aquele tom de Luiza e a sugestão dada por ela preocupou Suzana. Teria Luiza descoberto os encontros dela com Iago? Estranhamente, Iago passou a rarear as visitas e nunca tinha tempo para encontrar Suzana. Luiza continuava chegando fora do horário habitual, e parecia estar sempre alegre e disposta. Porém, estava se afastando dos afagos de Suzana. Havia sempre uma desculpa para evitar o toque: sono, indisposição, dor de cabeça... Suzana continuava a insistir com Iago, e marcaram um encontro em A Cubana, a sorveteria mais antiga de Salvador, ponto prestigiado no Elevador Lacerda. Suzana não quis crer, ao ver Iago se aproximando de mãos dadas com Leila, integrante do Balé Folclórico da Bahia.
Manteve, ainda assim, um tom cordial. Ou, pelo menos, tentou, até Leila dizer que havia muitas mulheres no grupo que se interessariam por ela. Suzana, num tom ríspido, reafirmou sua orientação sexual: hetero! E pode perceber um pequeno sorriso nos lábios de Iago. Saíram de lá sem conversar nada de concreto. Suzana para um lado e Leila de mãos dadas com Iago rumo ao Pelourinho.
Em casa, Suzana tentou restabelecer o namoro com Luiza, mas este não era o assunto mais importante para a companheira. Luiza deixou-a sozinha e disse que iria à faculdade. Suzana resolveu segui-la. Nem acreditava no que estava fazendo. Depois de duas horas, para seu completo espanto, Leila entrou no prédio e, meia hora depois, Leila e Luiza saíram de carro. Suzana foi no rastro e viu quando as duas entraram num casarão antigo no bairro do Santo Antônio Além do Carmo. Depois de mais de duas horas, elas foram até Bar do Paschoal, de onde se via um pôr-do-sol estonteante, mesmo com as nuvens semicarregadas do Outono baiano.
Inicialmente não entendeu bem. Depois, ligou para Iago e contou o que vira. Ele não demonstrou espanto. Disse que só podia ser coincidência e a chamou de neurótica. Aos poucos, Suzana começou a sentir-se mal. Tinha cólicas horríveis e quando falava disso a Luiza, a namorada mandava que ela tomasse um remédio qualquer. E ela assim o fazia, observando Luiza bater a porta sem piedade. O estado de Suzana se agravou e ela foi internada. Não por Luiza, mas por um vizinho. No hospital, nenhuma visita por dois dias. Os telefones de Iago e Luiza estavam sempre na caixa postal. No terceiro dia, Iago apareceu com Leila, e, meia hora depois, Luiza foi visitá-la. O médico não sabia qual o diagnóstico e sugeriu uma virose.
De volta a casa, as dores recomeçaram. Luiza passou a lhe dar os comprimidos na cama. Suzana via aquilo como um gesto de amor. Dois dias depois, Iago e Leila apareceram e Luiza ficou à beira do leito. Suzana estava morrendo. Não queria ir a um hospital, e Luiza chamou um advogado que a fez assinar um termo de responsabilidade, além do testamento no qual deixava tudo para Leila e exigia ser cremada. Antes de morrer, tão logo o advogado se foi, Leila agradeceu beijou Luiza e Iago demoradamente. Ela não podia acreditar. Leila disse: - Tínhamos que nos livrar do quarto elemento. Somos felizes a três...
Suzana quis falar. Já não conseguia. Os comprimidos envenenados a estavam matando. O médico leu a papelada e constatou morte natural. Suzana foi cremada e as cinzas espalhadas por Luiza, Leila e Iago num passeio de escuna pela Baía de Todos os Santos, desejo da morta. Leila e Iago mudaram-se para a casa de Luiza e estabeleceram a realidade que esboçaram um ano antes de Iago encontrar Suzana e passar a encontrá-la secretamente. Era a face cruel da sedução finalmente concretizada.

Imagem: NET

terça-feira, 6 de julho de 2010

SÓ CINZAS



IZA CALBO

Este ano não tem fogueira
Nem milho na brasa
Nem sua alegria de menino
A brincar de fogos
Não tem mais nove gatos
Nem a noite imensa do passado.

Este ano não vamos ver o mar
Nem vamos nos amar
Quando quase amanhecer
Você partiu
Eu fiquei
Sem nada a declarar
Com dois gatos
Sem milhos na brasa
Nem fogueira para te ver queimar fogos

Apenas eu
Os gatos
E a noite aprisionada
Numa lua por entre nuvens
Esta sim quase como no ano passado

No mais
Nem sua camisa quadriculada
Nem nossos chapéus
Para brincar de guardar fotos
Que já deletei há alguns meses

Você com ela
Eu aqui
Só e aqui
Simplesmente saboreando
Gotas de licor
E tentando entender
Porque tudo sempre acaba

Como não vou entender nunca
Deito-me na cama
E tento não me lembrar de mais nada
Porque não vale a pena
Porque você não vale a pena
Da minha saudade
Em cinzas tecidas.

Pronto. Adormeci!

Foto: Arquivo pessoal

quarta-feira, 23 de junho de 2010

CLAUSURA

Iza Calbo


Começa a anoitecer e não há nada por trás das nuvens
No casulo intempestivo dos desejos
Somos castos e sonoros como ventos intransponíveis
E, enquanto o entardecer entorpece,
A alma procura resoluta o teu avesso

Não te chamo pelo nome, porque te teço de encanto
Os pássaros tontos são, todos eles, mudos
Então calo-me também para que não os afugente
Com a beleza pela qual te proclamas
Sei que estás perto, sei que estou longe
Há mistério em todos os véus que dispo
Em todos os cantos que meus pés desviam
E é bom estar longe do solo que também pisas
Vez ou outra desenhando trilhas

Não, não quero a sensatez do amor perfeito
Quero a dor do querer estilhaçado
E é sempre assim quando distante me deito
Na cama que arrumei para te colocar ao lado

Também dispenso o teu beijo de outra boca
E finjo não ver que te transformas em incógnita
Todas as vezes em que meus lábios sentem o beijo recente e desconhecido

Acostumo-me a te ter assim aos poucos
A te consumir lentamente
Quase como se fosses desaparecer de repente
Como às vezes o faz solenemente

Talvez beba assim o pecado mais sutil
E me deixe levar pelo veneno mais mortal de todos:
O de te amar sem nada esperar e seguir esperando que me ames

Minha face rubra de estupidez
Entrega aos passantes a condição de amante
E tonta e sem saber por onde ir
Cato nas fontes perdidas das cidades
Uma água que me mate, mas não de sede

Aprendi a ficar só e à espera
Só e inutilmente
Cavoucando nos papéis que escrevo e amasso
Um amor que nem sei se sentes

Rasgo trechos inteiros de intenções
Por que na poesia deste descompasso
Não encontro a verve do amar que traço

DO ENCANTO
Iza Calbo

“A maior besteira da vaidade está em achar que o outro se encontra desarmado. O encanto mata! " (IC)


Sorria do teu riso pela paz que ele me acenava
Tocava teus lábios porque neles via apenas alegria
Nunca imaginei que da tua boca ouviria palavras torpes,
Muito menos que o teu riso se desfaria em gritos alucinados.
Já não te reconheço
Já não te quero ver
Já não te quero mais
O tempo segue embaralhando as cartas do velho baralho
Mas já não temos mais como jogar
Não há nenhum ás escondido nas mangas
Muito menos a possibilidade de voltar à mesa do jantar
Catamos nossos cacos e não foi suficiente
Pedaços minúsculos da taça foram perdidos para sempre
E não temos como brindar nada em meio a tamanho desencantamento.
Estamos separados de corpos e de fato
Não mais nos abraçaremos repletos de saudades
E embriagados de nós mesmos
Seguimos, agora, em direções opostas
E eu já não preciso mais te olhar
Nem zelar por ti
Ganhaste o espaço de novo
E nos perdemos nesta imensidão
Que dobra a esquina sem olhar para trás
Não desperdice palavras
Nem tente bordar enfeites inexistentes
Até o passado vai ficando embaçado
E o teu riso, antes a marca da tua/nossa alegria
É agora uma lembrança perdida na neblina
Das esperanças sem acalanto.

Imagem: Fotomontagem/Net

sábado, 5 de junho de 2010

A MENINA E O BRANCO


IZA CALBO


Sábado.
Nada parece ser o que é.
Os bêbados na esquina.
As frutas vendidas em bancas nas ruas.
Os sorrisos apressados.
O quase atropelo do homem maltrapilho.

Passo esmalte azul nas unhas.
Minhas mãos, assim coloridas,
Despejam palavras sem vértebras no papel.
O amor passou por mim
E eu sequer notei.

Talvez o cheiro cítrico do incenso
Tenha embotado a minha capacidade de sentir.

Olho a foto.
Tudo está branco.
A menina pousada no sofá
Esbanja curvas sinuosas
Que percorrem a lente da câmera
E se eternizam ali. Para sempre.

Olho de novo
E busco detalhes...
Os pés pequeninos
A displicência quase inocente
Da menina que ama mulheres
E se entrega às amantes
Num quase acinte ao que penso ser sensatez.

O plano é perfeito.
O branco é exato.
E a menina?
A menina não sabe ter sido flagrada em sua inocência.

Somente isso explica a beleza distinta do momento
Como se a bela pequena fosse uma divindade
E talvez o seja.
Olhando a foto, em preto-e-branco enfatizada
A personagem central do foco
Parece deitada,
Num ângulo de cachoeira...

Pode-se sentir a água doce.
E tudo que a menina exala
Provocando ora candura, ora espanto
Seria mãe ou filha-de-santo?
Seria quadro pintado a mão?
Folhinha de borracharia? Propaganda de revista?

Ninguém sabe.
Sabe-se apenas que, é FATO:
A FOTO encanta.

PS: Para Leila Machado

sexta-feira, 4 de junho de 2010

CARTA DO FIM



IZA CALBO

Salvador, Bahia Brasil, 04/06/2010


Bethânia enche o pequeno sótão de sentimento. Já não estou sozinha. Não agora. Relembro coisas, paisagens, momentos. Pessoas que foram, que são, que podem vir a ser. A falta do seu olhar bobo de anjo. O corpo estirado à espera de sexo. O sexo jogado no sofá como uma manobra de xadrez. O gozo imaginado. As imagens que excitam; o disparar do coração dilacerado...
Tudo parece estranhamente belo. Como escrever usando caneta e papel para, só depois, usar o asséptico teclado do computador. A casa tão cheia de mim, que de tão vazia já nem sei quem sou. O cheiro do café que fazias e que já não faço. O pão quente que trazias e que aboli da casa como se a me livrar de tudo que nos lembre ou que te lembre.
Contudo, apesar destes desvios propositais; do feijão feito sem esmero porque comer sozinha (o) é aprender a não se importar com o sabor... Apesar de tudo isso, volta e meia esbarro no teu traço rude; na tua boca sempre pronta ao beijo; no meu medo de que partistes. E vejo, então, que nada impediu que outra pessoa viesse e te levasse pelas mãos e se metesse entre seus braços. E as mãos que só segurávamos como nós, até estas se perderam das minhas. Restou apenas a lembrança do toque, do jeito de entrelaçar os dedos e sair rua afora em busca de qualquer caminho.
Sempre sentirei saudades. Até mesmo do que não vivemos. Porque guardei os teus olhos para o eterno e a tua falta para o abismo. Meu desespero virou passatempo. Meu sorriso, escassez. Só restaram algumas fotos já deletadas; o sabor inesquecível do amor que dizias sentir... E mais nada.
O relógio vive parado. Melhor assim. Não gosto dos ponteiros passando; do tic-tac; da sua exatidão tão inexata. Na parede do quarto, deixei o vazio. Não ouso preenchê-lo. Na pequena sala, algumas coisas de um passado sem volta; de uma amargura que grita até quando a vida parece calar.
Nunca mais te olharei nos olhos. Nem tocarei tuas mãos, muito menos teus cabelos finos. O anjo que encontrei na esquina morreu de overdose. Tomou falsas promessas em excesso e agonizou diante de mim, acolhido por uma pessoa qualquer que não fazia parte desta história. Uma história que deveria durar, ainda que o meu tempo estivesse adiante do seu. Adiantado mesmo, ainda que todos os relógios do mundo parassem.
Salvador, 18 horas. Caetano canta. Chove, porque no Outono a chuva insiste em se esfregar nas janelas e o vento canta uma canção esquisita, quase atrapalhando o som da sala. O som que ouvíamos quando chegávamos do mar, temperados de sal e sol. A vida é assim: uma interrupção seguida de outra até que a morte chegue enchendo o vazio com um vazio ainda maior e mais intenso: o fim de um de nós.


Abraços e um toque nas tuas mãos. Até isso me negaste.

Imagem: Internet

A QUASE MORTE DO AMOR


IZA CALBO

Parei de amar para não matar o amor
Deixei um algodão doce sobre o mármore da cozinha
Para que sentisses a minha partida como a um parque de domingo
Não fiz as malas. Não levei as coisas que eram minhas. Parti quieta
Quase como quem enlouquece no meio da noite e de si mesmo.
Não quis estragar o teu sorriso lindo com um quê estranho de espanto.
Toquei-te suavemente evitando que acordaste
Não quis que me visses dar as costas
Porque não era o pretendido.
Sinto ainda teus dentes alvos arrancando pedaços do meu corpo
E o teu jeito sereno de pedir carinho em meio ao pranto.
Parei de amar o amor que estava adoecendo
O amor que uma vez parou na porta do quarto
O amor que não chegamos a fazer.
Parei de amar o amor que levei embora e que guardo em mim
Como a um anjo desesperado com asas arrancadas sem prévio aviso.
Ao parar de amar o amor, parei de fingir não amar-te
E colei o amor casto, intocado, numa das estantes do meu ser sem sentido
E, assim, matando o amor que tanto amo,
Perdi o senso do que poderia amar além do amor quase morto.

IMAGEM: WEB

terça-feira, 1 de junho de 2010

SER




IZA CALBO


Tem quem viva para ser feliz e quem viva para ser algoz de si mesmo
Tem quem nos deixe em paz e tem quem faça questão de mostrar a paz como algo inacessível

Tem filhos que merecem os pais que tem, pais que não merecem os filhos que tiveram
Tem Homens que nos fazem sentir gente e os que fazem com que queiramos, a todo custo, sair correndo para um lugar aonde nada chegue até nós

Tem os traidores; os traídos; os inocentes; os bandidos
Tem até quem se ache superior e apto a julgar todas as nossas ações sem olhar para as próprias

Tem quem desatine e quem pense duas vezes antes de calar
Tem quem mereça viver, crescer, parir para sentir na pele todas as contrações dos partos malditos
Porque talvez deste modo, estes seres possam entender o amor na sua plenitude sem ter a coragem
de dar o primeiro tapa e causar o primeiro assombro

Tem quem deixe saudade e tem quem não nos faça sentir absolutamente nada,
a não ser o desejo de ser completamente apagado daquela cena vivida ou não
Tem mulheres que se submetem; homens que roubam infâncias; crianças que permitem ter suas infâncias perdidas; mães que consentem; pais que se calam; irmãos que se amam e irmãos que se matam

Tem de tudo neste mundo. Mas tem a chamada escolha e, por sermos frutos destas, devemos carregar fardos insuportáveis ou viver leves e com a sensação plena de que voar é, sim, algo viável

Tem quem busque a faca amolada para tirar vidas e quem a use apenas para preparar um bife a ser servido no almoço em família. Há quem porte arma e há quem porte palavras suaves mais eficazes que um tiro na fronte.

Tem aquele dia em que seria melhor não acordar; não atender ao telefone; não sonhar com um novo amor; não lamentar os amores perdidos

Tem razões e sem-razões
Possibilidades e falta destas. E, para sorte de muitos, tem a tal da sorte que alguns carregam como a uma estrela pregada nos pés.
Pessoas que trilham somente os caminhos mais brilhantes e as que se deixam matar, aos poucos, embaixo das marquises.
Tem quem use drogas e tem quem não ache graça alguma em viver com a mente embaçada de ilusões efêmeras.

Tem quem trague o seu cigarro e tem quem traga vida a nós. No mais, se tem o SER que pode ser humano e deixar impressões delicadas por onde passe
E tem os que desconheçam o prazer da humanidade e, por isso, semeiem sempre tempestades ainda que se refugiem em preces e suplicas sem saber ao menos que existe algo maior que a insanidade do dia a dia.

Tem você, eu, ele, ela, aquele, aquela e os que são chamados de ninguém. Mas tem aquele ninguém que, um dia, sem saber por que, descobre que pode ser BOM e DIGNO. A estes, por maior que seja a distância, serão sempre chamados e amados como AMIGOS.

Aos meus AMIGOS boas-vindas. Aos inimigos, uma prece para que descubram em si mesmos que o ressentimento é uma cruz pesada e espinhenta e que não vale a pena carregá-lo porque, quem tem coração, jamais será cortado pela insensatez dos seres ditos sem luz.

E, para terminar, tem a luz para quem quiser sair das sombras

Imagem: Internet

sexta-feira, 28 de maio de 2010

A QUEM INTERESSAR OU PARA THAIZE




IZA CALBO

Eu só queria que você me amasse
Que não esperasse nada além
Que nunca tivesse crescido e começasse a pensar
Que entendesse
Que nunca, em momento algum
Desejei que alguém te fizesse mal
E que se o fez
Foi sem que eu tivesse consentido
Que a tua voz de mágoa
Me tira o sono
Me enruga a tez
Eu só queria que nós fossemos
Mãe e filha
Só isso
Rindo, comendo e bebendo juntas
Ainda que muitas coisas estivessem erradas...
Eu não queria ser julgada sem defesa
Condenada por você assim
Sem um ato sequer de explicação
Se fiz algum mal
Foi para tentar te proteger
Jamais imaginei
Na candura do possível PAI
A mão ambígua do inimigo.
Mas se nada disso vês!

Porque passo noites insones
A imaginar como seria
Se tivéssemos permanecido
No próprio caos?
Jamais quis te colocar no Inferno
Mas o fiz sem querer
E o demônio virou anjo
E eu... Diabo
Que assim seja então....
Não vou te pedir perdão
Porque palavras são ladras
E não quero roubar-te as certezas
Que carregas sem, ao menos,
Questionar as verdades.
Vai. Fica em paz e sem mim.
Só fiz te amar mais e mais...
Mereces-te?
Claro.
És a única com inocência neste URDIR de verdades sem
explicações.

Imagem: NET

VELÓRIO



IZA CALBO

Rompi todos os elos com o passado.
Não sou mais a que respirava há cinco segundos.
Catei as roupas carcomidas pelo tempo passado
E dei-as àquela mulher com um filho no colo
E um enorme caroço a cobrir-lhe parte da face.
Foi a pessoa mais parecida com a morte que encontrei!
Agora, neste instante, busco um caminho
Muito distante de qualquer estrada
Desvinculado disso, deste ou desta.
Se esta renovação não funcionar
Aí sim não me restará muito
Que não encontrar com a morte de fato
A que tantos clamam, mas temem
A que nos espreita, sorrateira,
E ri das vezes em que a buscamos
E ela, por querer, esquiva-se de nós.
Se morrer me aplacasse a alma;
As dores que tive;
Os julgamentos a mim impostos;
A sentença determinada sem direito a defesa;
Já a teria pego a força
Neste apartamento vazio de tudo
E, agora, até mesmo dos laços antigos
Que, em vão, tentei remendar
Contudo se a morte for a minha redenção
Pelas coisas que pratiquei e as que não
Pela cegueira que me impediu de ver fatos hediondos e alguns belos também,
Então não custa tentar.
Isso, também, chama-se livre arbítrio
E temos o direito à escolha
Entre estar ou não
Num mundo tão mesquinho, pequeno, deficiente
Nas coisas mais simples
Mundo em que os pais são apenas uma forma de chegarmos nele
E as pessoas mais fáceis de magoarmos.
Um dia sonhei ser mãe
Imaginei o ventre crescendo
E coloquei batas bordadas
À espera daquela criança
Que veio, que tive, amei, ouvi, enfeitei com esmero,
Mas que desapareceu e foi para muito longe
Tomada pelas mãos de um homem
De sorriso claro, voz firme, que até parecia um pai
Que até foi alçado ao posto de companheiro, marido, pai de outra criança linda
Que acho que ainda tenho
Homem que levou a inocência da filha que tanto quis ter
Tendo eu magoado meus pais em suas falsas moralidades
E que hoje vive com o passado, o presente e o futuro
Porque ao tatuar um Cristo no braço,
Este “homem” concedeu a si mesmo o perdão
Sem se importar com culpas
Com os estragos enormes por ele provocados,
Mas dados a mim como uma espécie de Cavalo de Tróia
Que aceitamos sem imaginar quanta maldade pode haver numa figura
Esculpida em homenagem a um deus.
Dispo-me dos meus pecados
Das minhas fantasias,
Das promessas que me fizeram
Sem preocupação em cumpri-las
Acompanha-me, tão-somente,
Uma solidão maior do que tudo isso,
Maior que todas as forcas
Onde eu possa meter o pescoço.
Porque estar viva, deste jeito, é estar morta devagar e solenemente.

sexta-feira, 21 de maio de 2010

PERDIDA



Terá sido amor a aflição agora refém da minha alma?
Ou não terá sido nada?
Quem sou eu? Quem és?
Por onde andas neste instante se pareces a dois segundos de mim,
Mas já partiste há meses?
Por que brincaste de me fazer sentir?
Que motivo tinhas para me deixar tão loucamente só?
Dei-te colo, abrigo, aconchego, carinho?
Dei-te minhas mãos para que saíste daquele beco sujo.
E tu? Me desde esperança, certezas que não tinhas
E até sonhos para sonharmos depois de amanhã
No entanto, nada era real. Tua teia de mentiras acabou
sufocando
O ar já sufocante do cotidiano.
Pedi-te presença dias seguidos e não atendeste aos meus apelos
Ainda assim oro por ti
E quero-te bem mesmo sem que mereças
Sinto enormemente a tua falta
E adoraria rir das tuas bobagens de menino
Empinando pipas remendadas
Dei-te o quase eterno de mim
E, de volta, recebi a extrema-unção por estar viva
E absolutamente jogada a esmo.

domingo, 18 de abril de 2010

ANGÚSTIA DE SER NADA



IZA CALBO

Sou fácil de ser esquecida
Passo pela vida das pessoas
Sem deixar marcas de fogo... ou de água
Muitas fingem nunca terem me visto antes
Crio assim, de mim para mim mesma, um anonimato
Que me faz ser a cada momento mais invisível
Às vezes esta certeza parece rasgar a minha alma
É como uma não existência insistente
Que vai me transmutando de nada em nada
Não deixo saudade
Nem mesmo cicatriz
Sou uma desconhecida
E nem eu mesma saberia me identificar
Talvez eu não esteja aqui
Talvez eu não seja ninguém
Este talvez quase absoluto
Faz não me enxergar no espelho
Nem mesmo perceber o tempo que passa
E esta sensação angustiante de calma
Passeia tortuosa pelas minhas veias
Já despidas de sangue
Talvez eu seja imortal e não saiba
Seja um fantasma a atormentar o que sobrou do que fui um dia
De qualquer forma
Isso não importa
Porque mesmo não existindo
Eu sinta cada gota de sentimento
Que se derrama no asfalto
Na chuva a lavar as janelas
Nas frestas de onde observo
A minha não vida.
E, ainda sim,
Sinto dor, amo e amarro uma saudade no peito
Que mais parece um estilete a rasgar a minha pele fio a fio
Talvez a automutilação deste meu não ser nada
Um dia, quem sabe, me permita ser gente.

18/04/2010

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010

CONFESSO




Respiração apressada.

Saudade abrandada por compressas de palavras passadas.

Nada que se cale.

Nada que se cure.

E o silêncio carrasco a castigar toda a sala

antes habitada pelas palavras trocadas sem razão.

Quero esquecer o amor que tive.

Quero me livrar de possíveis amores.

Estar só é estar próximo de um ser supremo,

que pode ser eu mesma... ou DEUS.

Será que sou Deus?

Será que criei a humanidade e incorri no erro de descansar

quando deveria ter revisto detalhes,

aparado arestas.

Mas o que seria o mundo perfeito,

o mundo sem nada a corrigir?

Tedioso?

Sem mais nada a fazer além de dizer AMÉM?

Não sei.

Já não sei de mais nada.

Perdi o prumo, o senso, o rumo,

o sentido deste barco sem destino.

ESTOU SÒ.

sábado, 16 de janeiro de 2010

POEMINHA DA ALMA PERDIDA




Catei uns trapos e coloquei na pequena sacola plástica.
Lembrei dos barbitúricos e de alguns escritos...
Sempre só e sem destino, cai no mundo
E parei no primeiro botequim.
Já tive gosto refinado,
Roupas menos deselegantes
Amantes menos arrogantes
E vontades de ser algo além.
Tive sonhos e não foram poucos.
Escrevi coisas que me pareciam belas,
Mas sempre imperfeitas.
Faltando um algo mais.
Amei como quem ama pela última vez
E fui tão sincera neste amor
Que nem vi o tempo passando levando o que sequer havia.
Restou tão pouco.
Restou quase nada.
Uma falsa alegria...
Um falar que não diz nada
E a saudade desesperada
Quase tão louca quanto eu.
Aqui do boteco
Vejo o vaivém de gente
E até faço prospecções e traço projetos.
Sei que as realizações ficam no papel amarelado
Que rasgo antes de sair trôpega pelas ruas.
Roubaram meu chão
E não pude, como na música,
Ser ou ter o centro do espelho.
Agora me vejo espectro de qualquer coisa
Com necessidade de matar a sede
Sem triscar na água
De matar a fome
Sem saber que gosto as coisas têm.
Há um amargor em mim
Que parece não ter cura
Uma tristeza tão grande
Que não transborda
Apenas me entope
Para se fazer lembrar.
As lágrimas que pulam dos olhos
Não conseguem acalmar a dor
E a alma?
Esta, sei, PERDI.

16-jan-2009, às 12h30