sexta-feira, 28 de maio de 2010

VELÓRIO



IZA CALBO

Rompi todos os elos com o passado.
Não sou mais a que respirava há cinco segundos.
Catei as roupas carcomidas pelo tempo passado
E dei-as àquela mulher com um filho no colo
E um enorme caroço a cobrir-lhe parte da face.
Foi a pessoa mais parecida com a morte que encontrei!
Agora, neste instante, busco um caminho
Muito distante de qualquer estrada
Desvinculado disso, deste ou desta.
Se esta renovação não funcionar
Aí sim não me restará muito
Que não encontrar com a morte de fato
A que tantos clamam, mas temem
A que nos espreita, sorrateira,
E ri das vezes em que a buscamos
E ela, por querer, esquiva-se de nós.
Se morrer me aplacasse a alma;
As dores que tive;
Os julgamentos a mim impostos;
A sentença determinada sem direito a defesa;
Já a teria pego a força
Neste apartamento vazio de tudo
E, agora, até mesmo dos laços antigos
Que, em vão, tentei remendar
Contudo se a morte for a minha redenção
Pelas coisas que pratiquei e as que não
Pela cegueira que me impediu de ver fatos hediondos e alguns belos também,
Então não custa tentar.
Isso, também, chama-se livre arbítrio
E temos o direito à escolha
Entre estar ou não
Num mundo tão mesquinho, pequeno, deficiente
Nas coisas mais simples
Mundo em que os pais são apenas uma forma de chegarmos nele
E as pessoas mais fáceis de magoarmos.
Um dia sonhei ser mãe
Imaginei o ventre crescendo
E coloquei batas bordadas
À espera daquela criança
Que veio, que tive, amei, ouvi, enfeitei com esmero,
Mas que desapareceu e foi para muito longe
Tomada pelas mãos de um homem
De sorriso claro, voz firme, que até parecia um pai
Que até foi alçado ao posto de companheiro, marido, pai de outra criança linda
Que acho que ainda tenho
Homem que levou a inocência da filha que tanto quis ter
Tendo eu magoado meus pais em suas falsas moralidades
E que hoje vive com o passado, o presente e o futuro
Porque ao tatuar um Cristo no braço,
Este “homem” concedeu a si mesmo o perdão
Sem se importar com culpas
Com os estragos enormes por ele provocados,
Mas dados a mim como uma espécie de Cavalo de Tróia
Que aceitamos sem imaginar quanta maldade pode haver numa figura
Esculpida em homenagem a um deus.
Dispo-me dos meus pecados
Das minhas fantasias,
Das promessas que me fizeram
Sem preocupação em cumpri-las
Acompanha-me, tão-somente,
Uma solidão maior do que tudo isso,
Maior que todas as forcas
Onde eu possa meter o pescoço.
Porque estar viva, deste jeito, é estar morta devagar e solenemente.

Nenhum comentário: