quarta-feira, 14 de julho de 2010

COMO NO CINEMA


IZA CALBO

Eu amo a minha doce serenidade de agora
A paciência que chega e não vai embora
Como se tudo fosse um filme
Roteirizado, dirigido e realizado por mim
Porque eu me enquadro na cena
E protagonizo o que há de vida
E que se duplica
Para que tudo seja editado
Com o glamour das estrelas
Que encarno
E que me faz seduzir o tempo em cada plano
Aproximando, revendo, refazendo a história
Com beijos que se vão
Beijos que se dão
Com a maestria da técnica que o amor não exige
Porque o que vale nesta tela de brinquedo
É estar atenta ao enredo
Escrito na hora
No assim e no agora
Em preto-e-branco
Em cor
Em close
Em detalhe que só a luz que ambienta
Pode e deve traduzir-me em risos!

14-07-2010
Foto: Arquivo pessoal

sábado, 10 de julho de 2010

A MORTE NO MORRO DE MARIA



IZA CALBO

Morando no Morro do Águia, há mais de 30 anos, Maria não tinha expectativas com relação ao futuro. Os filhos mais velhos viviam do tráfico de drogas, e os mais novos eram usuários e “aviões”. O marido, José, um pedreiro sem carteira assinada, fazia “bicos” para trazer pão para casa. Ela, para aumentar os parcos ganhos, costurava, limpava, passava e lavava para os outros. Embora tivesse 40 anos, tinha a feição marcada pelas rugas de uma preocupação incessante, e também por não sentir-se mais amada e muito menos mulher. Não raro, apanhava do marido, que, bêbado e trôpego, descarregava nela suas frustrações. Como se ela já não as tivesse de sobra.
Era comum viver marcada pelos murros e empurrões. Como era igualmente normal ser tomada à força e abrir as pernas sem vontade, para um sexo violento e sem nada que beirasse os seus desejos. Vizinhas mais antenadas com os direitos das mulheres citavam para ela a tal Lei Maria da Penha, aconselhando-a dar queixa daquele homem, ou mesmo dos filhos mais velhos, igualmente violentos e desrespeitosos. Maria, contudo, não ousava abrir a boca. Tinha medo de voltar, e sabia bem que não seria acolhida, a menos que as agressões a deixassem à beira da morte. Vivia, então, seus dias de medo. No final da tarde, fazia uma sopa rala e um café insosso, e esperava a chegada do pão para alimentar os quatro filhos caçulas. Eram dez ao todo. E apenas uma menina, Helena, a mais nova, de um ano e dois meses.
Maria não saía muito do barraco, nem era de ficar de prosa com a vizinhança. Confiava apenas em Cida, comadre de longas datas, a quem confidenciava as amarguras do dia-a-dia. Cida era prostituta, e José não gostava da amizade de Maria com ela. Por isso, só se viam quando tinham certeza da ausência de José, ao longo do dia. Afora isso, se entreolhavam, mas não trocavam palavra. Sabia, no entanto, da queda de José por Cida, e das vezes em que o dinheiro ganho nos “bicos” havia ido parar no sutiã da comadre, guardado entre os seios já flácidos daquela puta de todos os homens do morro. Não se incomodava com isso. Afinal, Cida não escondia, e José muito menos.
Num dia acizentado, escutando as notícias de um programa sensacionalista, em sua TV velha e cheia de rabiscos, Maria escutou acerca de uma execução e da morte de quatro jovens. Estava costurando e olhou para a imagem. De imediato, reconheceu a tatuagem de um dos filhos, e saiu feito louca para ver o corpo ainda à espera do Instituto Médico Legal (IML). Lá, encontrou não apenas George, como Vladson, Francisco e João, quatro das suas dez crias. Todos perfurados por balas numa cena dantesca. Não se aproximou demais. Apenas viu a morte anunciada, e uma lágrima marcou-lhe a face. Onde estariam Norberto e Ademário? Deu às costas, e voltou para o barraco. Sequer tinha uma vela para acender, e talvez, se a tivesse, não o fizesse. Os filhos eram brutos. A tratavam como a um trapo, entre empurrões e xingamentos.
Os três caçulas, Robson, Roberto e Radson chegaram chorando no barraco. Ela não fez nenhuma pergunta. Tinham 13, 14 e 15 anos. A pequena Helena era “raspa de tacho”, pois, desde o nascimento dela, Maria frequentava o posto de saúde, e, sem pedir permissão a José, usava pílulas anticoncepcionais. Não queria mais pôr filhos no mundo. Filhos que, pensava, logo se voltariam contra ela. Não demorou para José entrar afobado no barraco, falando da desgraça que se abatera na família. Como se ele pensasse assim! Maria sabia: por dentro, o marido estava dando graças a Deus, por se ver livre dos filhos traficantes, que, muitas vezes, o haviam agredido moral e fisicamente. Mas José chorou, e acabou aparecendo na TV falando da dor de um pai em perder seus filhos. Maria viu aquilo com ar de nojo. E, mais, José jurou se tratar de meninos bons, bem educados e livre do miserável mundo das drogas. Obviamente, a reportagem associou a execução ao tráfico, não dando também muita importância à morte de quatro supostos delinquentes.
Naquele dia, Maria observou o que restara: Noberto, Ademário, Robson, Roberto, Radson, Helena e José. No dia seguinte, enterrariam George, Vladson, Francisco e João, no cemitério da Quinta dos Lázaros, na ala reservada aos pobres. Os caixões foram doados pelo programa de TV, a pedido do pai, e a cova rasa os esperava no chão de barro do lugar cheirando a morte. O enterro também foi televisionado, e o repórter afirmava que a mãe estava em estado de choque. De onde ele tirara isso? Maria estava lá, por obrigação, e em estado de alívio. Voltaram num ônibus fretado pelo traficante e dono do morro. Não trocaram palavra. Maria apenas tirou o seio murcho e amamentou Helena.
Duas semanas depois, tudo parecia ter voltado ao normal. José agora bebia mais, porque, sem quatro filhos, o dinheiro dos “bicos” parecia sobrar, embora faltasse tudo em casa. Pagou para comer a comadre puta; deu uma surra em Maria, num sábado qualquer, sem motivo aparente, e, por pouco, não matou a pequena Helen,a derrubando-a do colo, numa tentativa de brincar de pai amoroso. Dos seis filhos ainda vivos, Maria parecia se preocupar apenas com Helena, e, pensando nisso, pediu a Cida que levasse a pequena para longe dali. Cida retrucou: - Como você vai explicar ao compadre, mulher? Ela disse apenas: Leve ela daqui. E assim foi feito.
Ao chegar em casa, José perguntou pela caçula, e Maria, aos prantos, avisou que a menina havia sumido. Mal terminou de falar, e já tomou o primeiro murro, perdendo mais um dente. Depois, ouviu todos os xingamentos, e viu José sair para reclamar no Posto Policial sobre o desaparecimento. E assim Helena entrou para a lista de crianças desaparecidas, sem ter uma foto sequer para servir de identificação. Com a boca ainda inchada, Maria saiu na manhã seguinte até a Feira de São Joaquim. Pediu chumbinho numa barraca, substância com venda proibida e usada para matar ratos. O chumbinho era vendido sem nenhuma fiscalização. Bastavam-lhe dois pacotes.
Á noite, com os dentes que restavam a lhe doer e a mama cheia de leite, colocou chumbinho na sopa rala, e esperou todos chegarem para servir, com a desculpa de que ainda não aprontara a comida. José chegou por último. Maria sabia que pelo menos outros três filhos deviam ao traficante, e, quase em súplica, naquela tarde, pediu ao homem uma solução. Ele, mesmo acostumado à violência, não entendeu o desespero daquela mulher de boca inchada. Mas ela explicou o que iria fazer. A ele bastava que ele mandasse seus “soldados” invadir o barraco, e, mesmo que todos já estivessem mortos pelo veneno de rato, fossem metralhados.
Ele achou que estava errado, mas também disse não estar muito incomodado. Quando todos estavam tomando a sopa, os homens entraram com seus fuzis. Alguns já estavam sentindo dores, mas os tiros certeiros em pontos vitais trouxeram o esperado descanso. Maria, a última a ser morta, olhou e guardou aquele sangue nos olhos semicerrados. No dia seguinte, a TV anunciou a chacina da família dos quatro jovens, que, no mesmo mês, haviam sido executados. Todos foram associados ao tráfico, e o inquérito dado por encerrado.
Ao saber do fato, Cida saiu em direção a uma casa que tinha num bairro pobre da cidade, e embalou Helena como se a uma filha. Deu a mamadeira da afilhada, e rezou uma Ave-Maria, pensando na aflição da comadre. Pelos outros, não teve sequer pena. Nem mesmo dos outros dois afilhados. Deitou-se ao lado de Helena, e dormiu sem pensar no enterrro, ao qual não compareceria na manhã seguinte.

Imagem - Internet

ASAS PARTIDAS



IZA CALBO

Desde a primeira troca de olhares, Carolina sabia que não iria parar. De súbito, um calor tomou seu corpo e um tremor a fez querer ter aquele homem junto a si. Fabro tinha olhos cor de água, uma boa musculatura, ombros largos, esguio... Tudo na medida exata. Isso fazia as palmas das mãos de Carolina se apressarem em carinhos no pássaro desenhado naquelas costas. Mas onde daria aquela história? Algumas casas os separavam, e, numa delas, havia mulher e filho a esperá-lo. Ficaria a amante resignada? Ou, depois de contatos mais íntimos, a saudade se tornaria fúria a cutucar-lhe a alma?
Não sabia. Queria pisar fundo no acelerador perigoso dos encontros furtivos. E não demorou muito para Fabro bater à sua porta. Carolina nem pensou. Abriu e o recebeu como se o conhecesse há muito. E, para espanto dela, a pequena poção de sexo foi extenuante. Os corações disparados, o suor de ambos confraternizados num abraço sem definições. Após três encontros, Carolina não teve mais notícias de Fabro. Olhava pela janela; esperava os passos; as batidas na porta... Nada!
Soube, então, que ele se mudara para outra cidade. Isso quatro dias após o terceiro encontro. O mais intenso. Por que Fabro não falou que partiria? Que morbidez esta a de deixá-la a esperar no sótão? Relembrou apenas uma frase dele, antes de escapar sorrateiro: - Vai demorar um tempo para nos vermos de novo! Entendeu esse tempo como algo entre 10 ou 15 dias.
Não hesitou em iniciar uma caçada por notícias mais concretas. Perguntou discretamente aos vizinhos sobre aquele homem com um pássaro colado nas costas. A saudade, transmutada em fúria, parecia ter se tornado uma presença indomável. Soube que estava numa cidadezinha do sul do País, não muito longe. Juntou as informações, como quem recorta palavras e escreve cartas de resgate. Já tinha o endereço. Era o bastante.
Passou a morar perto dele, olhando-o à distância. Não demorou a vê-lo bater em outras portas e fazer amor a toque de caixa. Ou bater em algumas portas, e só sair pela manhã, após uma noite inteira com outra. Isso a encheu de ira. Uma ira sem controle. Lá estava o homem com o pássaro nas costas. Lá estava o homem com olhos transparentes. O homem que ela desejava, mas que era um perdido em vielas sujas, becos, buscando prazeres nas drogas e nas mulheres da vida.
A partir daí, a vontade de cortar as asas do pássaro passou a ser uma obsessão. Carolina, sem desconfiar deste lado negro e vingativo, passava horas a assistir filmes de assassinato. Estava movida pela fúria do ciúme, provocada por uma saudade sufocante. Resolveu voltar a seu sótão, a fim de não levantar suspeitas. Passou a conversar com as pessoas pela internet, demonstrando estar bem, ainda que só. Mas, pelo menos durante uma semana, ela ia até onde Fabro estava, e se instalava numa pensão de quinta, para acompanhá-lo em suas aventuras.
Numa destas vezes, o viu abraçar uma mulher de cabelos curtos como os seus, e rodopiá-la na despedida. Como fazia antes de deixá-la sozinha à sua espera. O sangue subiu ao cérebro, e seu coração tornou-se uma pedra de gelo. Naquele instante, exatamente a partir daquela cena, nada a impediria de urdir um plano no qual ele e seu pássaro estúpido deixariam de ser livres para sempre.
Embora ainda lembrasse ternamente dos três encontros e do sexo cheio de vigor, feito com horas contadas, algo havia se modificado na meiga feição de Carolina. Tão logo pode, rumou a uma loja e comprou algumas perucas e óculos, para poder andar mais próxima dele, sem ser notada. Numa destas investidas, Fabro chegou perto demais, mas ela saiu, como se não notasse a mão quase pousada em seu ombro. Não podia se dar ao luxo de ser descoberta. Não queria seguir humilhada pelas andanças de Fabro, cujas mentiras incluíam a de um casamento no qual era marido fiel até vê-la pela primeira vez. Fidelidade que durava, pelas contas dele, mais de cinco anos e que só havia se quebrado ela troca de olhares dos dois.
Como iria atraí-lo? Pensou em várias maneiras. A mais fácil seria pagar uma das moças para seduzi-lo, e dopá-lo. E depois? Como levá-lo de um lugar a outro? Decidiu alugar um quarto e sala, num beco sujo, onde boa parte das moças que ele levava para a cama morava. Era um quarto sem quase nada. Uma cama de solteiro de madeira velha, um abajur, uma penteadeira antiga, uma cadeira, um banheiro com uma cortina lamacenta no box, uma geladeira caindo aos pedaços e um fogão igualmente velho. As roupas de cama vieram juntas e cheiravam a mofo. Não havia uma área grande para estendê-las. Contudo, tudo poderia ser improvisado.
Como fez falsificando os documentos e o novo nome: Cassandra. A mulher desdentada não exigiu muito para alugar-lhe o moquifo. Apenas o adiantamento de um mês, mas ela lhe dera o de quatro, avisando que era para um amigo de prenome Fabro. Não queria manter contato. Precisava esconder suas feições, sua fala; evitar contatos desnecessários. Fabro estava quase sempre por perto. Trabalhava durante o dia; falava ao celular com a esposa, umas três ou quatro vezes por semana, e, depois, no tempo livre, entregava-se às mulheres e às drogas.
Carolina, agora Cassandra, passou a ficar num dos pontos de venda. Não puxava conversa com os outros, mas fingia ser usuária. Conheceu uma mulher gorda, de belo rosto, chamada Adriana. E Adriana falava demais. O que era uma bênção. Cabia à Cassandra apenas escutá-la e esboçar acenos com a cabeça, ou murmurar poucas palavras. Adriana vinha de uma família rica, mas, viciada em crack, morava nas ruas. Para comprar a droga, fazia programas. O prazer que tinha quando usava era passageiro, e isso a forçava a aumentar o número de clientes para o seu sexo descuidado, sem uso de preservativo, e sem olhar a cara de quem a tomaria nos braços, em troca de R$ 15 ou R$ 20.
Adriana já havia estado com Fabro, não como prostituta, mas como parceira para dividir a efemeridade do chamado “beijo da morte”, ou crack. Não sabia bem qual o motivo, mas Fabro gostava de ficar ao lado dela. Talvez, por Adriana lembrar vagamente a mulher que deixara em casa. Esta comunhão poderia render o que Cassandra esperava. E não tardou a acontecer.
Numa noite meio chuvosa e fria, Cassandra ouvia as aventuras e desventuras de Adriana, quando Fabro se aproximou e ficou ao lado delas. O excesso de roupas, a peruca, a maquiagem e os óculos estranhos não permitiram a Fabro reconhecer Carolina. Além disso, havia o crack a embotar-lhe a mente. Neste dia, Carolina fumou um pouco daquela coisa maldita, enquanto Fabro perguntava-lhe sobre sua vida. Por sorte, Adriana se antecipava contando-lhe o que imaginava saber: - Esta é Cassandra, mas ela não se vende; até aluga um quarto. Perdeu um filho por causa das drogas, e veio parar aqui, na tentativa de esquecer.... Ela quase não se droga, não gosta da pedra.
Fabro perguntou se podia acompanhá-la até sua casa. Inicialmente, ela negou, mas saíram juntos, sem trocar palavras. No quarto, Fabro jogou-se na cama, e, apesar do frio, tirou a blusa. Deitou-se de costas e o pássaro parecia querer alçar vôo dali. Cassandra deixou apenas o abajur ligado, e entupiu a bebida de Fabro com sonífero. Ele sorveu rapidamente e disse: - Vem!
Cassandra ouviu a voz suave. Pensou desistir. Não podia. A fúria da saudade mesclada a tudo o que vira era maior. Despiu-se do disfarce e apareceu nua. Ele balbuciou: Eu a conheço... Mas Carolina/Cassandra ofereceu-lhe mais crack. Quanto mais ele fumava, mais queria. Os olhos cor de água começaram a revirar e a boca espumava. Ele se contorceu um tempo, e tombou de costas no chão. Mortos, Fabro, o pássaro e a pacata amante abandonada.
Cassandra saiu e, no dia seguinte, após quase quatro meses embalando o fim de Fabro nos braços, ao invés de usar a lan house, falou com os amigos do seu sótão, como a Carolina de sempre. Dois dias depois, soube da morte do vizinho por overdose, conclusão dos peritos, ao ouvir a dona do quartinho e os drogados das redondezas. Foi reconhecido pela esposa, por conta da tatuagem: Pássaro morto e sem asas!

Imagem - Intenet

SEDUÇÃO E VENENO



IZA CALBO

Tudo parecia nulo na manhã de segunda-feira. O Outono a rondar os passos de Suzana e o coração aos saltos ensejando estar ao lado de Iago. Ela não sabia ao certo como explicar à Luiza, sua amante há mais de cinco anos, o repentino interesse por aquele rapaz de cabelos encaracolados e olhos beirando a mel. Os três se conheceram numa danceteria, e passaram a sair juntos. Suzana mantinha distância de Luiza, sob o pretexto de preservar a união e escapar ao preconceito. Luiza não se importava. Iago era tímido, mas ficava sempre com um olhar inquieto para ambas. Passar algumas horas com Suzana, algumas vezes por semana, e manter isso em segredo, era o pacto feito entre eles. Logo, Luiza não saberia de nada, e tudo se harmonizava.
Luiza e Iago costumavam conversar. Mesmo quando Suzana se afastava. Havia entre eles uma luz perceptível a olho nu. Fácil de ser percebida de longe. Quando Iago estava trabalhando, Luiza e Suzana aproveitavam para tocar e trocar carinhos libidinosos. Moravam na mesma casa, e tinham um comportamento insuspeito. Para os vizinhos, eram boas amigas. A presença de Iago despertou a curiosidade. Qual delas era a namorada do belo jovem? Ninguém sabia. Em casa, eles jogavam, assistiam a filmes, e, após certo horário, Iago se despedia, deixando as duas mulheres com suas vidas de sempre.
Mas Suzana não ficava completamente à vontade. Luiza parecia apática. Uma não perguntava nada à outra, e muito menos comentavam sobre Iago. Suzana era jornalista, e Luiza antropóloga. Iago trabalhava como web design, numa grande empresa, e todos eram financeiramente independentes. Isso permitia que cada um vivesse a seu modo, e nenhuma interferência iria (supostamente) abalar o cotidiano.
Num sábado qualquer, Luiza e Suzana saíram para dar uma volta pelo bairro boêmio do Rio Vermelho, um dos locais mais movimentados dos dias e noites baianos. Suzana disse a Luiza que não havia conseguido falar com Iago, omitindo apenas a tarde passada com ele num motel, naquele mesmo dia. Luiza confessou haver tentado convidá-lo, mas também não disse por que chegara em casa após o horário de costume. Por volta da meia noite, no badalado Acarajé de Cira, Iago apareceu acompanhado de uma mulher, e as duas amantes não conseguiram disfarçar o constrangimento. Apresentou-a como uma colega de trabalho chamada Leila.
Com algumas doses a mais, Iago e Leila passaram a demonstrar algo além da amizade, na troca de olhares e afagos. Reticentes, Luiza e Suzana metralharam a moça de perguntas, num quase interrogatório. Leila, sempre na defensiva, fingia não estar compreendendo tamanho interesse, e perguntou se as duas eram namoradas. O semblante de Suzana ficou bem mais pesado que uma manhã de Inverno. Luiza fingiu espanto e ofensa. E Iago, conciliador, negou qualquer tipo de relação que não uma amizade de muitos anos. Mas Leila insistiu e perguntou se elas tinham algum namorado. Afinal, eram jovens e bonitas. Ambas disseram que tiveram relações terminadas recentemente, e estavam aproveitando a vida.
Iago e Leila deixaram o lugar, e as duas ficaram em completo silêncio, sem trocar palavra. Depois de meia hora, decidiram pedir a conta e seguiram para casa. Suzana deitou no sofá da sala e Luiza foi para o quarto. Amanheceram assim. No final do dia, receberam a visita de Iago e agiram friamente, como se houvessem combinado tal reação. Iago perguntou se havia algo de errado. Para ele, como elas eram namoradas, nada o impedia de acrescentar uma quarta pessoa a este conjunto. Contudo, elas não pareceram satisfeitas diante daquela mulher jovem, morena, sorridente e irônica. Calaram-se.
No dia seguinte, Suzana marcou com Iago. No motel, despejou toda a raiva sentida no sábado ao vê-lo com outra mulher. Ele falou não compreender tal ataque de ciúme, se ela tinha uma vida ao lado de Luiza e ele não se importava. Discutiram um bom tempo, mas acabaram fazendo amor. Suzana, desta vez, não sentiu o mesmo prazer de antes, e perguntou se “transar” com Leila era bom. Iago respondeu que sim. Suzana bateu a porta e pegou o seu carro quase esbarrando numa grade de proteção.
Ao chegar em casa, não encontrou Luiza, mais uma vez atrasada. Onde estaria? Começou a se perguntar. Duas horas depois, Luiza apareceu e foi direto para o banho, mas Suzana a seguiu e quis uma explicação. Luiza disse que não a estava reconhecendo. Afinal, nunca exigiram nada uma da outra. Haviam prometido serem leais e fiéis. Suzana disse que não estava pensando nisso, mas Luiza disse que ela deveria.
Aquele tom de Luiza e a sugestão dada por ela preocupou Suzana. Teria Luiza descoberto os encontros dela com Iago? Estranhamente, Iago passou a rarear as visitas e nunca tinha tempo para encontrar Suzana. Luiza continuava chegando fora do horário habitual, e parecia estar sempre alegre e disposta. Porém, estava se afastando dos afagos de Suzana. Havia sempre uma desculpa para evitar o toque: sono, indisposição, dor de cabeça... Suzana continuava a insistir com Iago, e marcaram um encontro em A Cubana, a sorveteria mais antiga de Salvador, ponto prestigiado no Elevador Lacerda. Suzana não quis crer, ao ver Iago se aproximando de mãos dadas com Leila, integrante do Balé Folclórico da Bahia.
Manteve, ainda assim, um tom cordial. Ou, pelo menos, tentou, até Leila dizer que havia muitas mulheres no grupo que se interessariam por ela. Suzana, num tom ríspido, reafirmou sua orientação sexual: hetero! E pode perceber um pequeno sorriso nos lábios de Iago. Saíram de lá sem conversar nada de concreto. Suzana para um lado e Leila de mãos dadas com Iago rumo ao Pelourinho.
Em casa, Suzana tentou restabelecer o namoro com Luiza, mas este não era o assunto mais importante para a companheira. Luiza deixou-a sozinha e disse que iria à faculdade. Suzana resolveu segui-la. Nem acreditava no que estava fazendo. Depois de duas horas, para seu completo espanto, Leila entrou no prédio e, meia hora depois, Leila e Luiza saíram de carro. Suzana foi no rastro e viu quando as duas entraram num casarão antigo no bairro do Santo Antônio Além do Carmo. Depois de mais de duas horas, elas foram até Bar do Paschoal, de onde se via um pôr-do-sol estonteante, mesmo com as nuvens semicarregadas do Outono baiano.
Inicialmente não entendeu bem. Depois, ligou para Iago e contou o que vira. Ele não demonstrou espanto. Disse que só podia ser coincidência e a chamou de neurótica. Aos poucos, Suzana começou a sentir-se mal. Tinha cólicas horríveis e quando falava disso a Luiza, a namorada mandava que ela tomasse um remédio qualquer. E ela assim o fazia, observando Luiza bater a porta sem piedade. O estado de Suzana se agravou e ela foi internada. Não por Luiza, mas por um vizinho. No hospital, nenhuma visita por dois dias. Os telefones de Iago e Luiza estavam sempre na caixa postal. No terceiro dia, Iago apareceu com Leila, e, meia hora depois, Luiza foi visitá-la. O médico não sabia qual o diagnóstico e sugeriu uma virose.
De volta a casa, as dores recomeçaram. Luiza passou a lhe dar os comprimidos na cama. Suzana via aquilo como um gesto de amor. Dois dias depois, Iago e Leila apareceram e Luiza ficou à beira do leito. Suzana estava morrendo. Não queria ir a um hospital, e Luiza chamou um advogado que a fez assinar um termo de responsabilidade, além do testamento no qual deixava tudo para Leila e exigia ser cremada. Antes de morrer, tão logo o advogado se foi, Leila agradeceu beijou Luiza e Iago demoradamente. Ela não podia acreditar. Leila disse: - Tínhamos que nos livrar do quarto elemento. Somos felizes a três...
Suzana quis falar. Já não conseguia. Os comprimidos envenenados a estavam matando. O médico leu a papelada e constatou morte natural. Suzana foi cremada e as cinzas espalhadas por Luiza, Leila e Iago num passeio de escuna pela Baía de Todos os Santos, desejo da morta. Leila e Iago mudaram-se para a casa de Luiza e estabeleceram a realidade que esboçaram um ano antes de Iago encontrar Suzana e passar a encontrá-la secretamente. Era a face cruel da sedução finalmente concretizada.

Imagem: NET

terça-feira, 6 de julho de 2010

SÓ CINZAS



IZA CALBO

Este ano não tem fogueira
Nem milho na brasa
Nem sua alegria de menino
A brincar de fogos
Não tem mais nove gatos
Nem a noite imensa do passado.

Este ano não vamos ver o mar
Nem vamos nos amar
Quando quase amanhecer
Você partiu
Eu fiquei
Sem nada a declarar
Com dois gatos
Sem milhos na brasa
Nem fogueira para te ver queimar fogos

Apenas eu
Os gatos
E a noite aprisionada
Numa lua por entre nuvens
Esta sim quase como no ano passado

No mais
Nem sua camisa quadriculada
Nem nossos chapéus
Para brincar de guardar fotos
Que já deletei há alguns meses

Você com ela
Eu aqui
Só e aqui
Simplesmente saboreando
Gotas de licor
E tentando entender
Porque tudo sempre acaba

Como não vou entender nunca
Deito-me na cama
E tento não me lembrar de mais nada
Porque não vale a pena
Porque você não vale a pena
Da minha saudade
Em cinzas tecidas.

Pronto. Adormeci!

Foto: Arquivo pessoal