sábado, 10 de julho de 2010

ASAS PARTIDAS



IZA CALBO

Desde a primeira troca de olhares, Carolina sabia que não iria parar. De súbito, um calor tomou seu corpo e um tremor a fez querer ter aquele homem junto a si. Fabro tinha olhos cor de água, uma boa musculatura, ombros largos, esguio... Tudo na medida exata. Isso fazia as palmas das mãos de Carolina se apressarem em carinhos no pássaro desenhado naquelas costas. Mas onde daria aquela história? Algumas casas os separavam, e, numa delas, havia mulher e filho a esperá-lo. Ficaria a amante resignada? Ou, depois de contatos mais íntimos, a saudade se tornaria fúria a cutucar-lhe a alma?
Não sabia. Queria pisar fundo no acelerador perigoso dos encontros furtivos. E não demorou muito para Fabro bater à sua porta. Carolina nem pensou. Abriu e o recebeu como se o conhecesse há muito. E, para espanto dela, a pequena poção de sexo foi extenuante. Os corações disparados, o suor de ambos confraternizados num abraço sem definições. Após três encontros, Carolina não teve mais notícias de Fabro. Olhava pela janela; esperava os passos; as batidas na porta... Nada!
Soube, então, que ele se mudara para outra cidade. Isso quatro dias após o terceiro encontro. O mais intenso. Por que Fabro não falou que partiria? Que morbidez esta a de deixá-la a esperar no sótão? Relembrou apenas uma frase dele, antes de escapar sorrateiro: - Vai demorar um tempo para nos vermos de novo! Entendeu esse tempo como algo entre 10 ou 15 dias.
Não hesitou em iniciar uma caçada por notícias mais concretas. Perguntou discretamente aos vizinhos sobre aquele homem com um pássaro colado nas costas. A saudade, transmutada em fúria, parecia ter se tornado uma presença indomável. Soube que estava numa cidadezinha do sul do País, não muito longe. Juntou as informações, como quem recorta palavras e escreve cartas de resgate. Já tinha o endereço. Era o bastante.
Passou a morar perto dele, olhando-o à distância. Não demorou a vê-lo bater em outras portas e fazer amor a toque de caixa. Ou bater em algumas portas, e só sair pela manhã, após uma noite inteira com outra. Isso a encheu de ira. Uma ira sem controle. Lá estava o homem com o pássaro nas costas. Lá estava o homem com olhos transparentes. O homem que ela desejava, mas que era um perdido em vielas sujas, becos, buscando prazeres nas drogas e nas mulheres da vida.
A partir daí, a vontade de cortar as asas do pássaro passou a ser uma obsessão. Carolina, sem desconfiar deste lado negro e vingativo, passava horas a assistir filmes de assassinato. Estava movida pela fúria do ciúme, provocada por uma saudade sufocante. Resolveu voltar a seu sótão, a fim de não levantar suspeitas. Passou a conversar com as pessoas pela internet, demonstrando estar bem, ainda que só. Mas, pelo menos durante uma semana, ela ia até onde Fabro estava, e se instalava numa pensão de quinta, para acompanhá-lo em suas aventuras.
Numa destas vezes, o viu abraçar uma mulher de cabelos curtos como os seus, e rodopiá-la na despedida. Como fazia antes de deixá-la sozinha à sua espera. O sangue subiu ao cérebro, e seu coração tornou-se uma pedra de gelo. Naquele instante, exatamente a partir daquela cena, nada a impediria de urdir um plano no qual ele e seu pássaro estúpido deixariam de ser livres para sempre.
Embora ainda lembrasse ternamente dos três encontros e do sexo cheio de vigor, feito com horas contadas, algo havia se modificado na meiga feição de Carolina. Tão logo pode, rumou a uma loja e comprou algumas perucas e óculos, para poder andar mais próxima dele, sem ser notada. Numa destas investidas, Fabro chegou perto demais, mas ela saiu, como se não notasse a mão quase pousada em seu ombro. Não podia se dar ao luxo de ser descoberta. Não queria seguir humilhada pelas andanças de Fabro, cujas mentiras incluíam a de um casamento no qual era marido fiel até vê-la pela primeira vez. Fidelidade que durava, pelas contas dele, mais de cinco anos e que só havia se quebrado ela troca de olhares dos dois.
Como iria atraí-lo? Pensou em várias maneiras. A mais fácil seria pagar uma das moças para seduzi-lo, e dopá-lo. E depois? Como levá-lo de um lugar a outro? Decidiu alugar um quarto e sala, num beco sujo, onde boa parte das moças que ele levava para a cama morava. Era um quarto sem quase nada. Uma cama de solteiro de madeira velha, um abajur, uma penteadeira antiga, uma cadeira, um banheiro com uma cortina lamacenta no box, uma geladeira caindo aos pedaços e um fogão igualmente velho. As roupas de cama vieram juntas e cheiravam a mofo. Não havia uma área grande para estendê-las. Contudo, tudo poderia ser improvisado.
Como fez falsificando os documentos e o novo nome: Cassandra. A mulher desdentada não exigiu muito para alugar-lhe o moquifo. Apenas o adiantamento de um mês, mas ela lhe dera o de quatro, avisando que era para um amigo de prenome Fabro. Não queria manter contato. Precisava esconder suas feições, sua fala; evitar contatos desnecessários. Fabro estava quase sempre por perto. Trabalhava durante o dia; falava ao celular com a esposa, umas três ou quatro vezes por semana, e, depois, no tempo livre, entregava-se às mulheres e às drogas.
Carolina, agora Cassandra, passou a ficar num dos pontos de venda. Não puxava conversa com os outros, mas fingia ser usuária. Conheceu uma mulher gorda, de belo rosto, chamada Adriana. E Adriana falava demais. O que era uma bênção. Cabia à Cassandra apenas escutá-la e esboçar acenos com a cabeça, ou murmurar poucas palavras. Adriana vinha de uma família rica, mas, viciada em crack, morava nas ruas. Para comprar a droga, fazia programas. O prazer que tinha quando usava era passageiro, e isso a forçava a aumentar o número de clientes para o seu sexo descuidado, sem uso de preservativo, e sem olhar a cara de quem a tomaria nos braços, em troca de R$ 15 ou R$ 20.
Adriana já havia estado com Fabro, não como prostituta, mas como parceira para dividir a efemeridade do chamado “beijo da morte”, ou crack. Não sabia bem qual o motivo, mas Fabro gostava de ficar ao lado dela. Talvez, por Adriana lembrar vagamente a mulher que deixara em casa. Esta comunhão poderia render o que Cassandra esperava. E não tardou a acontecer.
Numa noite meio chuvosa e fria, Cassandra ouvia as aventuras e desventuras de Adriana, quando Fabro se aproximou e ficou ao lado delas. O excesso de roupas, a peruca, a maquiagem e os óculos estranhos não permitiram a Fabro reconhecer Carolina. Além disso, havia o crack a embotar-lhe a mente. Neste dia, Carolina fumou um pouco daquela coisa maldita, enquanto Fabro perguntava-lhe sobre sua vida. Por sorte, Adriana se antecipava contando-lhe o que imaginava saber: - Esta é Cassandra, mas ela não se vende; até aluga um quarto. Perdeu um filho por causa das drogas, e veio parar aqui, na tentativa de esquecer.... Ela quase não se droga, não gosta da pedra.
Fabro perguntou se podia acompanhá-la até sua casa. Inicialmente, ela negou, mas saíram juntos, sem trocar palavras. No quarto, Fabro jogou-se na cama, e, apesar do frio, tirou a blusa. Deitou-se de costas e o pássaro parecia querer alçar vôo dali. Cassandra deixou apenas o abajur ligado, e entupiu a bebida de Fabro com sonífero. Ele sorveu rapidamente e disse: - Vem!
Cassandra ouviu a voz suave. Pensou desistir. Não podia. A fúria da saudade mesclada a tudo o que vira era maior. Despiu-se do disfarce e apareceu nua. Ele balbuciou: Eu a conheço... Mas Carolina/Cassandra ofereceu-lhe mais crack. Quanto mais ele fumava, mais queria. Os olhos cor de água começaram a revirar e a boca espumava. Ele se contorceu um tempo, e tombou de costas no chão. Mortos, Fabro, o pássaro e a pacata amante abandonada.
Cassandra saiu e, no dia seguinte, após quase quatro meses embalando o fim de Fabro nos braços, ao invés de usar a lan house, falou com os amigos do seu sótão, como a Carolina de sempre. Dois dias depois, soube da morte do vizinho por overdose, conclusão dos peritos, ao ouvir a dona do quartinho e os drogados das redondezas. Foi reconhecido pela esposa, por conta da tatuagem: Pássaro morto e sem asas!

Imagem - Intenet

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