sábado, 10 de julho de 2010

A MORTE NO MORRO DE MARIA



IZA CALBO

Morando no Morro do Águia, há mais de 30 anos, Maria não tinha expectativas com relação ao futuro. Os filhos mais velhos viviam do tráfico de drogas, e os mais novos eram usuários e “aviões”. O marido, José, um pedreiro sem carteira assinada, fazia “bicos” para trazer pão para casa. Ela, para aumentar os parcos ganhos, costurava, limpava, passava e lavava para os outros. Embora tivesse 40 anos, tinha a feição marcada pelas rugas de uma preocupação incessante, e também por não sentir-se mais amada e muito menos mulher. Não raro, apanhava do marido, que, bêbado e trôpego, descarregava nela suas frustrações. Como se ela já não as tivesse de sobra.
Era comum viver marcada pelos murros e empurrões. Como era igualmente normal ser tomada à força e abrir as pernas sem vontade, para um sexo violento e sem nada que beirasse os seus desejos. Vizinhas mais antenadas com os direitos das mulheres citavam para ela a tal Lei Maria da Penha, aconselhando-a dar queixa daquele homem, ou mesmo dos filhos mais velhos, igualmente violentos e desrespeitosos. Maria, contudo, não ousava abrir a boca. Tinha medo de voltar, e sabia bem que não seria acolhida, a menos que as agressões a deixassem à beira da morte. Vivia, então, seus dias de medo. No final da tarde, fazia uma sopa rala e um café insosso, e esperava a chegada do pão para alimentar os quatro filhos caçulas. Eram dez ao todo. E apenas uma menina, Helena, a mais nova, de um ano e dois meses.
Maria não saía muito do barraco, nem era de ficar de prosa com a vizinhança. Confiava apenas em Cida, comadre de longas datas, a quem confidenciava as amarguras do dia-a-dia. Cida era prostituta, e José não gostava da amizade de Maria com ela. Por isso, só se viam quando tinham certeza da ausência de José, ao longo do dia. Afora isso, se entreolhavam, mas não trocavam palavra. Sabia, no entanto, da queda de José por Cida, e das vezes em que o dinheiro ganho nos “bicos” havia ido parar no sutiã da comadre, guardado entre os seios já flácidos daquela puta de todos os homens do morro. Não se incomodava com isso. Afinal, Cida não escondia, e José muito menos.
Num dia acizentado, escutando as notícias de um programa sensacionalista, em sua TV velha e cheia de rabiscos, Maria escutou acerca de uma execução e da morte de quatro jovens. Estava costurando e olhou para a imagem. De imediato, reconheceu a tatuagem de um dos filhos, e saiu feito louca para ver o corpo ainda à espera do Instituto Médico Legal (IML). Lá, encontrou não apenas George, como Vladson, Francisco e João, quatro das suas dez crias. Todos perfurados por balas numa cena dantesca. Não se aproximou demais. Apenas viu a morte anunciada, e uma lágrima marcou-lhe a face. Onde estariam Norberto e Ademário? Deu às costas, e voltou para o barraco. Sequer tinha uma vela para acender, e talvez, se a tivesse, não o fizesse. Os filhos eram brutos. A tratavam como a um trapo, entre empurrões e xingamentos.
Os três caçulas, Robson, Roberto e Radson chegaram chorando no barraco. Ela não fez nenhuma pergunta. Tinham 13, 14 e 15 anos. A pequena Helena era “raspa de tacho”, pois, desde o nascimento dela, Maria frequentava o posto de saúde, e, sem pedir permissão a José, usava pílulas anticoncepcionais. Não queria mais pôr filhos no mundo. Filhos que, pensava, logo se voltariam contra ela. Não demorou para José entrar afobado no barraco, falando da desgraça que se abatera na família. Como se ele pensasse assim! Maria sabia: por dentro, o marido estava dando graças a Deus, por se ver livre dos filhos traficantes, que, muitas vezes, o haviam agredido moral e fisicamente. Mas José chorou, e acabou aparecendo na TV falando da dor de um pai em perder seus filhos. Maria viu aquilo com ar de nojo. E, mais, José jurou se tratar de meninos bons, bem educados e livre do miserável mundo das drogas. Obviamente, a reportagem associou a execução ao tráfico, não dando também muita importância à morte de quatro supostos delinquentes.
Naquele dia, Maria observou o que restara: Noberto, Ademário, Robson, Roberto, Radson, Helena e José. No dia seguinte, enterrariam George, Vladson, Francisco e João, no cemitério da Quinta dos Lázaros, na ala reservada aos pobres. Os caixões foram doados pelo programa de TV, a pedido do pai, e a cova rasa os esperava no chão de barro do lugar cheirando a morte. O enterro também foi televisionado, e o repórter afirmava que a mãe estava em estado de choque. De onde ele tirara isso? Maria estava lá, por obrigação, e em estado de alívio. Voltaram num ônibus fretado pelo traficante e dono do morro. Não trocaram palavra. Maria apenas tirou o seio murcho e amamentou Helena.
Duas semanas depois, tudo parecia ter voltado ao normal. José agora bebia mais, porque, sem quatro filhos, o dinheiro dos “bicos” parecia sobrar, embora faltasse tudo em casa. Pagou para comer a comadre puta; deu uma surra em Maria, num sábado qualquer, sem motivo aparente, e, por pouco, não matou a pequena Helen,a derrubando-a do colo, numa tentativa de brincar de pai amoroso. Dos seis filhos ainda vivos, Maria parecia se preocupar apenas com Helena, e, pensando nisso, pediu a Cida que levasse a pequena para longe dali. Cida retrucou: - Como você vai explicar ao compadre, mulher? Ela disse apenas: Leve ela daqui. E assim foi feito.
Ao chegar em casa, José perguntou pela caçula, e Maria, aos prantos, avisou que a menina havia sumido. Mal terminou de falar, e já tomou o primeiro murro, perdendo mais um dente. Depois, ouviu todos os xingamentos, e viu José sair para reclamar no Posto Policial sobre o desaparecimento. E assim Helena entrou para a lista de crianças desaparecidas, sem ter uma foto sequer para servir de identificação. Com a boca ainda inchada, Maria saiu na manhã seguinte até a Feira de São Joaquim. Pediu chumbinho numa barraca, substância com venda proibida e usada para matar ratos. O chumbinho era vendido sem nenhuma fiscalização. Bastavam-lhe dois pacotes.
Á noite, com os dentes que restavam a lhe doer e a mama cheia de leite, colocou chumbinho na sopa rala, e esperou todos chegarem para servir, com a desculpa de que ainda não aprontara a comida. José chegou por último. Maria sabia que pelo menos outros três filhos deviam ao traficante, e, quase em súplica, naquela tarde, pediu ao homem uma solução. Ele, mesmo acostumado à violência, não entendeu o desespero daquela mulher de boca inchada. Mas ela explicou o que iria fazer. A ele bastava que ele mandasse seus “soldados” invadir o barraco, e, mesmo que todos já estivessem mortos pelo veneno de rato, fossem metralhados.
Ele achou que estava errado, mas também disse não estar muito incomodado. Quando todos estavam tomando a sopa, os homens entraram com seus fuzis. Alguns já estavam sentindo dores, mas os tiros certeiros em pontos vitais trouxeram o esperado descanso. Maria, a última a ser morta, olhou e guardou aquele sangue nos olhos semicerrados. No dia seguinte, a TV anunciou a chacina da família dos quatro jovens, que, no mesmo mês, haviam sido executados. Todos foram associados ao tráfico, e o inquérito dado por encerrado.
Ao saber do fato, Cida saiu em direção a uma casa que tinha num bairro pobre da cidade, e embalou Helena como se a uma filha. Deu a mamadeira da afilhada, e rezou uma Ave-Maria, pensando na aflição da comadre. Pelos outros, não teve sequer pena. Nem mesmo dos outros dois afilhados. Deitou-se ao lado de Helena, e dormiu sem pensar no enterrro, ao qual não compareceria na manhã seguinte.

Imagem - Internet

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