sábado, 10 de julho de 2010

SEDUÇÃO E VENENO



IZA CALBO

Tudo parecia nulo na manhã de segunda-feira. O Outono a rondar os passos de Suzana e o coração aos saltos ensejando estar ao lado de Iago. Ela não sabia ao certo como explicar à Luiza, sua amante há mais de cinco anos, o repentino interesse por aquele rapaz de cabelos encaracolados e olhos beirando a mel. Os três se conheceram numa danceteria, e passaram a sair juntos. Suzana mantinha distância de Luiza, sob o pretexto de preservar a união e escapar ao preconceito. Luiza não se importava. Iago era tímido, mas ficava sempre com um olhar inquieto para ambas. Passar algumas horas com Suzana, algumas vezes por semana, e manter isso em segredo, era o pacto feito entre eles. Logo, Luiza não saberia de nada, e tudo se harmonizava.
Luiza e Iago costumavam conversar. Mesmo quando Suzana se afastava. Havia entre eles uma luz perceptível a olho nu. Fácil de ser percebida de longe. Quando Iago estava trabalhando, Luiza e Suzana aproveitavam para tocar e trocar carinhos libidinosos. Moravam na mesma casa, e tinham um comportamento insuspeito. Para os vizinhos, eram boas amigas. A presença de Iago despertou a curiosidade. Qual delas era a namorada do belo jovem? Ninguém sabia. Em casa, eles jogavam, assistiam a filmes, e, após certo horário, Iago se despedia, deixando as duas mulheres com suas vidas de sempre.
Mas Suzana não ficava completamente à vontade. Luiza parecia apática. Uma não perguntava nada à outra, e muito menos comentavam sobre Iago. Suzana era jornalista, e Luiza antropóloga. Iago trabalhava como web design, numa grande empresa, e todos eram financeiramente independentes. Isso permitia que cada um vivesse a seu modo, e nenhuma interferência iria (supostamente) abalar o cotidiano.
Num sábado qualquer, Luiza e Suzana saíram para dar uma volta pelo bairro boêmio do Rio Vermelho, um dos locais mais movimentados dos dias e noites baianos. Suzana disse a Luiza que não havia conseguido falar com Iago, omitindo apenas a tarde passada com ele num motel, naquele mesmo dia. Luiza confessou haver tentado convidá-lo, mas também não disse por que chegara em casa após o horário de costume. Por volta da meia noite, no badalado Acarajé de Cira, Iago apareceu acompanhado de uma mulher, e as duas amantes não conseguiram disfarçar o constrangimento. Apresentou-a como uma colega de trabalho chamada Leila.
Com algumas doses a mais, Iago e Leila passaram a demonstrar algo além da amizade, na troca de olhares e afagos. Reticentes, Luiza e Suzana metralharam a moça de perguntas, num quase interrogatório. Leila, sempre na defensiva, fingia não estar compreendendo tamanho interesse, e perguntou se as duas eram namoradas. O semblante de Suzana ficou bem mais pesado que uma manhã de Inverno. Luiza fingiu espanto e ofensa. E Iago, conciliador, negou qualquer tipo de relação que não uma amizade de muitos anos. Mas Leila insistiu e perguntou se elas tinham algum namorado. Afinal, eram jovens e bonitas. Ambas disseram que tiveram relações terminadas recentemente, e estavam aproveitando a vida.
Iago e Leila deixaram o lugar, e as duas ficaram em completo silêncio, sem trocar palavra. Depois de meia hora, decidiram pedir a conta e seguiram para casa. Suzana deitou no sofá da sala e Luiza foi para o quarto. Amanheceram assim. No final do dia, receberam a visita de Iago e agiram friamente, como se houvessem combinado tal reação. Iago perguntou se havia algo de errado. Para ele, como elas eram namoradas, nada o impedia de acrescentar uma quarta pessoa a este conjunto. Contudo, elas não pareceram satisfeitas diante daquela mulher jovem, morena, sorridente e irônica. Calaram-se.
No dia seguinte, Suzana marcou com Iago. No motel, despejou toda a raiva sentida no sábado ao vê-lo com outra mulher. Ele falou não compreender tal ataque de ciúme, se ela tinha uma vida ao lado de Luiza e ele não se importava. Discutiram um bom tempo, mas acabaram fazendo amor. Suzana, desta vez, não sentiu o mesmo prazer de antes, e perguntou se “transar” com Leila era bom. Iago respondeu que sim. Suzana bateu a porta e pegou o seu carro quase esbarrando numa grade de proteção.
Ao chegar em casa, não encontrou Luiza, mais uma vez atrasada. Onde estaria? Começou a se perguntar. Duas horas depois, Luiza apareceu e foi direto para o banho, mas Suzana a seguiu e quis uma explicação. Luiza disse que não a estava reconhecendo. Afinal, nunca exigiram nada uma da outra. Haviam prometido serem leais e fiéis. Suzana disse que não estava pensando nisso, mas Luiza disse que ela deveria.
Aquele tom de Luiza e a sugestão dada por ela preocupou Suzana. Teria Luiza descoberto os encontros dela com Iago? Estranhamente, Iago passou a rarear as visitas e nunca tinha tempo para encontrar Suzana. Luiza continuava chegando fora do horário habitual, e parecia estar sempre alegre e disposta. Porém, estava se afastando dos afagos de Suzana. Havia sempre uma desculpa para evitar o toque: sono, indisposição, dor de cabeça... Suzana continuava a insistir com Iago, e marcaram um encontro em A Cubana, a sorveteria mais antiga de Salvador, ponto prestigiado no Elevador Lacerda. Suzana não quis crer, ao ver Iago se aproximando de mãos dadas com Leila, integrante do Balé Folclórico da Bahia.
Manteve, ainda assim, um tom cordial. Ou, pelo menos, tentou, até Leila dizer que havia muitas mulheres no grupo que se interessariam por ela. Suzana, num tom ríspido, reafirmou sua orientação sexual: hetero! E pode perceber um pequeno sorriso nos lábios de Iago. Saíram de lá sem conversar nada de concreto. Suzana para um lado e Leila de mãos dadas com Iago rumo ao Pelourinho.
Em casa, Suzana tentou restabelecer o namoro com Luiza, mas este não era o assunto mais importante para a companheira. Luiza deixou-a sozinha e disse que iria à faculdade. Suzana resolveu segui-la. Nem acreditava no que estava fazendo. Depois de duas horas, para seu completo espanto, Leila entrou no prédio e, meia hora depois, Leila e Luiza saíram de carro. Suzana foi no rastro e viu quando as duas entraram num casarão antigo no bairro do Santo Antônio Além do Carmo. Depois de mais de duas horas, elas foram até Bar do Paschoal, de onde se via um pôr-do-sol estonteante, mesmo com as nuvens semicarregadas do Outono baiano.
Inicialmente não entendeu bem. Depois, ligou para Iago e contou o que vira. Ele não demonstrou espanto. Disse que só podia ser coincidência e a chamou de neurótica. Aos poucos, Suzana começou a sentir-se mal. Tinha cólicas horríveis e quando falava disso a Luiza, a namorada mandava que ela tomasse um remédio qualquer. E ela assim o fazia, observando Luiza bater a porta sem piedade. O estado de Suzana se agravou e ela foi internada. Não por Luiza, mas por um vizinho. No hospital, nenhuma visita por dois dias. Os telefones de Iago e Luiza estavam sempre na caixa postal. No terceiro dia, Iago apareceu com Leila, e, meia hora depois, Luiza foi visitá-la. O médico não sabia qual o diagnóstico e sugeriu uma virose.
De volta a casa, as dores recomeçaram. Luiza passou a lhe dar os comprimidos na cama. Suzana via aquilo como um gesto de amor. Dois dias depois, Iago e Leila apareceram e Luiza ficou à beira do leito. Suzana estava morrendo. Não queria ir a um hospital, e Luiza chamou um advogado que a fez assinar um termo de responsabilidade, além do testamento no qual deixava tudo para Leila e exigia ser cremada. Antes de morrer, tão logo o advogado se foi, Leila agradeceu beijou Luiza e Iago demoradamente. Ela não podia acreditar. Leila disse: - Tínhamos que nos livrar do quarto elemento. Somos felizes a três...
Suzana quis falar. Já não conseguia. Os comprimidos envenenados a estavam matando. O médico leu a papelada e constatou morte natural. Suzana foi cremada e as cinzas espalhadas por Luiza, Leila e Iago num passeio de escuna pela Baía de Todos os Santos, desejo da morta. Leila e Iago mudaram-se para a casa de Luiza e estabeleceram a realidade que esboçaram um ano antes de Iago encontrar Suzana e passar a encontrá-la secretamente. Era a face cruel da sedução finalmente concretizada.

Imagem: NET

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