terça-feira, 10 de julho de 2007

FILHOS DA SANTA



A mulher ralhava com os filhos. Havia um quê de sensatez naquelas queixas todas, mas, a grande mágoa, ela trazia escondida nos olhos vazios. Olhava os meninos e via a si mesma. Olhava e ainda podia sentir o ventre mexendo de um lado a outro, primeiro revelando alegria e, depois, a agonia de carregar um ser vivo por aí. Não desgostava das suas crias. Achava-as estranhas, é bem verdade. Tinham traços característicos de cada um dos pais. E, cada um dos pais enchia, ainda mais, de vazio o olhar triste daquela mulher perdida na vida de asfalto e tédio.
Já estava com 40 anos e não sabia mais ao certo qual o verdadeiro nome. Havia usado muitos. Para cada um dos seus amantes, inventava uma outra mulher. Era a forma encontrada por ela para esquecer as dores das relações antigas e das posteriores. Sempre lhe havia doído amar. Naquele quarto de pequenas dimensões, entre pôsteres de ídolos das telenovelas brasileiras e mexicanas, Zefinha, Maria, Luzia, Damiana, Lurdes, Raquel, e tantas outras mulheres que ela era, tecia desejos infinitos e incontáveis. Aquele mundinho de fantasia e papel era uma espécie de refúgio, de tesouro, de invenção desesperada por não saber mais nada além disso.
Quando descia a Ladeira da Montanha, em direção ao comércio, sempre pensava como seria diferente se os caminhos da miséria e do descaso não tivessem descoberto a marca dos seus pés. Lutava contra o próprio destino. E, entre as raras lembranças felizes, vez ou outra, cruzava, em flashback, com os olhos castanhos claros do único homem para quem nunca, em momento algum, ousou mudar o nome. Só ele sabia sua verdadeira graça. Seus sonhos. Seus segredos de infância, como as constantes investidas do irmão em fazer com que as abelhas, colocadas dentro de um saco, mordessem os dedinhos de criança. E ela, com sua inocência, sempre repetia o gesto, porque, naquele tempo, sabia esquecer da dor.
Agora, olhando um dos filhos e caçando nele a fisionomia daquele homem encantado, a mulher tropeçava em sentimentos torpes de desengano. Havia amado com medo, mas havia amado. Havia gestado aquele amor em quantos meses nem se lembra e, depois, num hospital vagabundo, havia sentido a dor de parir o amor em carne e osso. Não havia gostado deste experimento. Preferia o amor das novelas, das revistas, dos filmes da sessão da tarde, mas não. Por um lapso ou por uma rendição idiota ao mais belo do ser, havia se permitido o entorpecimento do amor em sua forma mais apavorante: a real.
Quando chegou ao final da Ladeira da Montanha, cansada, enxugando a lágrima misturada ao suor, deu de cara com os sete filhos. Cada um de um pai, mas apenas brotado de um sonho esquisito, proibitivo para a sua vida de descaminhos, marinheiros, homens sujos, desconhecidos. Caiu na cama de lençóis rasgados, sem sequer servir aos filhos a sopa feita com o chupa-molho dado pelo açougueiro amigo. Dormiu como uma santa, emoldurada em suas lembranças de amor desfeito. Meia hora depois, abriu as portas para o primeiro cliente. Os filhos sonhavam. Talvez.

Publicado no Caderno Dois de A TARDE em 12/02/2000

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