sexta-feira, 4 de junho de 2010

CARTA DO FIM



IZA CALBO

Salvador, Bahia Brasil, 04/06/2010


Bethânia enche o pequeno sótão de sentimento. Já não estou sozinha. Não agora. Relembro coisas, paisagens, momentos. Pessoas que foram, que são, que podem vir a ser. A falta do seu olhar bobo de anjo. O corpo estirado à espera de sexo. O sexo jogado no sofá como uma manobra de xadrez. O gozo imaginado. As imagens que excitam; o disparar do coração dilacerado...
Tudo parece estranhamente belo. Como escrever usando caneta e papel para, só depois, usar o asséptico teclado do computador. A casa tão cheia de mim, que de tão vazia já nem sei quem sou. O cheiro do café que fazias e que já não faço. O pão quente que trazias e que aboli da casa como se a me livrar de tudo que nos lembre ou que te lembre.
Contudo, apesar destes desvios propositais; do feijão feito sem esmero porque comer sozinha (o) é aprender a não se importar com o sabor... Apesar de tudo isso, volta e meia esbarro no teu traço rude; na tua boca sempre pronta ao beijo; no meu medo de que partistes. E vejo, então, que nada impediu que outra pessoa viesse e te levasse pelas mãos e se metesse entre seus braços. E as mãos que só segurávamos como nós, até estas se perderam das minhas. Restou apenas a lembrança do toque, do jeito de entrelaçar os dedos e sair rua afora em busca de qualquer caminho.
Sempre sentirei saudades. Até mesmo do que não vivemos. Porque guardei os teus olhos para o eterno e a tua falta para o abismo. Meu desespero virou passatempo. Meu sorriso, escassez. Só restaram algumas fotos já deletadas; o sabor inesquecível do amor que dizias sentir... E mais nada.
O relógio vive parado. Melhor assim. Não gosto dos ponteiros passando; do tic-tac; da sua exatidão tão inexata. Na parede do quarto, deixei o vazio. Não ouso preenchê-lo. Na pequena sala, algumas coisas de um passado sem volta; de uma amargura que grita até quando a vida parece calar.
Nunca mais te olharei nos olhos. Nem tocarei tuas mãos, muito menos teus cabelos finos. O anjo que encontrei na esquina morreu de overdose. Tomou falsas promessas em excesso e agonizou diante de mim, acolhido por uma pessoa qualquer que não fazia parte desta história. Uma história que deveria durar, ainda que o meu tempo estivesse adiante do seu. Adiantado mesmo, ainda que todos os relógios do mundo parassem.
Salvador, 18 horas. Caetano canta. Chove, porque no Outono a chuva insiste em se esfregar nas janelas e o vento canta uma canção esquisita, quase atrapalhando o som da sala. O som que ouvíamos quando chegávamos do mar, temperados de sal e sol. A vida é assim: uma interrupção seguida de outra até que a morte chegue enchendo o vazio com um vazio ainda maior e mais intenso: o fim de um de nós.


Abraços e um toque nas tuas mãos. Até isso me negaste.

Imagem: Internet

2 comentários:

Unknown disse...

Espetacular!!!
Iza, estou com a respiração paralisada!
Muito lindo, muito forte, verdadeiro; muito, muito bom!
Vou divulgar já.

Márcio Evangelista dos Santos disse...

Oi, Iza! Assustador e preocupante, mas belo, como sempre, o seu texto. Que bom ver você produzindo e fazendo arte. Abraços, Márcio.